sábado, 2 de fevereiro de 2019

Ângela Luz

Era noite. Madrugada escura, madrugada cheia de cansaço como soem ser as madrugadas nos plantões; de apreensões porque nós a esperávamos. O cansaço e as apreensões fazem parte de nossas noites no hospital quando estamos à espera de alguém que está vindo e sabemos que é um caso grave. Grave a ponto de um grande hospital estar encaminhando para nós. Grave e sofrendo. Sofrendo e grave a ponto de temermos que o desafio esteja no limite de nossas capacidades.

Finalmente, quando a barra do dia talvez estivesse prestes a se postar no mais longe do horizonte; você chegou.
Um pequeno ser envolto em curativos e ligado a equipos, sondas e um destacado tubo que penetrava a boca e fazia você inflar e desinflar ao comando de um respirador que emitia um som numa intermitência rítmica e sincronizada com os movimentos de seu tórax.
Posta no leito da UTI, trocado o respirador do transporte pelo nosso, você passou para os nossos cuidados, para o nosso afeto, para nossas preocupações; para nossas condutas feitas de protocolos, de raciocínios, de experiências, de rapidez analítica, de tomar consciência quanto a tudo o que já fora feito, de monitoramento, de auscultas possíveis limitadas pelos curativos, de pedidos de exames laboratoriais, de visualizações  também limitadas pelos curativos.
Lidos os relatórios que a acompanhavam, feitas as avaliações, acertado o respirador, as bombas de infusão, as sondas, os gotejamentos e estabelecidas as drogas necessárias, acertado o jejum para os indispensáveis procedimentos no centro cirúrgico na manhã que se seguiria àquela madrugada; já se passara mais de hora e meia; então sentimos que dava para relaxar psicologicamente e respirar.
Aí começamos a ver você como a pequena criança linda e indefesa, cativante e encantadora, mesmo estando ali sedada e tendo somente um rostinho pontilhado de queimaduras, mesmo tendo uma sonda passada no nariz e um grosso tubo colocado na boca;  ainda assim cativante e emanando aquele encanto de criança que em você era presente e envolvente como um irresistível clamor por solidariedade e socorro.
Dia seguinte, já foi possível retirar aquele tubo da boca e seu rostinho ficar mais recomposto para ser visualizado. Mais alguns dias e as lesões do rosto cederam e com a melhora de algumas outras lesões da face e das orelhas; foi possível descobrir toda a cabeça.  Liberada a cabeça, toda a face, livre da sedação inicial; você passou a se comunicar com seus vivos olhos,  seu comunicativo olhar, seus murmúrio, com algumas palavras balbuciadas só para alguns de nós,  seus gemidos pungentes, com sua inquietude que nos angustiava e nos deixava também inquietos e nervosos.
Foram dias e mais dias dessa convivência.  Dias e mais dias de uma intensa luta. De uma amorosa dedicação das Técnicas de Enfermagem, do pessoal do laboratório, do corpo clínico multiprofissional competente e dedicado, dos cirurgiões e toda a equipe do CC.
Dias e mais dias de uma mãe angustiada, dedicada, sofrendo calada.
Foram muitos dias, muitas noites, horas e horas em  que você alternava períodos de melhoras e pioras; em que você chorosa clamava por alguém que alisasse seus cabelos, aliviasse os pruridos de suas imensas lesões, passando a mão sobre os curativos, dando medicações ou, até convencendo você de que a medicação já fora dada (quando não era hora) e que o efeito não tardaria a vir.
Também preces, muitas preces fizemos pondo a mão sobre você e pedindo a Deus que nos usasse para fazer o milagre tão necessário para você e para cada um de nós envolvidos profissionalmente e afetivamente pela sua angelical capacidade de capturar nossos sentimentos.
Há os que creem em Deus por uma fé incrustada em suas almas, há os que não veem lógica numa vida sem Deus e há os que, na extrema necessidade, invocam desesperadamente a presença desse Deus que não precisa de minha fé e nem de meu consentimento para que me use. Todas essas formas de crer e admitir Deus foram usadas por nós ao seu lado, por você, à beira de seu pequeno leito.
Palavras, cantigas, cantos, cânticos, histórias infantis onde menininhas assustadas acabavam vencendo a gravidade da doença, o medo, a dor, o trauma e voltando para sua cidade, seu bairro, sua casa e seu quintal cheio de encantos, de pássaros, de pequenos animais e de seus amigos. Também isso nós demos a você na tentativa de dar conforto, de melhorar seu íntimo.
A custo ajudamos você a ir lentamente se livrando do grande trauma que foi o acidente, quase doméstico, ocorrido em seu quintal quando queimavam lixo e crianças brincavam ali por perto e os adultos acreditavam que o fogo, a simples presença do fogo, seria suficiente para manter as crianças afastadas.
Não foi.
As crianças em sua ingênua inocência, na intrepidez da inexperiência e da necessidade do descobrir; se aproximaram e, então deu-se o inesperado, uma explosão causada por algum frasco de aerossol que atirassem ou que já estivesse misturado ao lixo; emitiu uma imensa língua de fogo que chamuscou alguma outra criança, mas envolveu perigosamente seu tenro, desprotegido, delicado e inocente corpinho.
Além do susto a dor, além da dor o pavor de uma situação que fugia ao controle dos pais, da família, da medicina de sua cidade, dos médicos do grande hospital da capital. Além de tudo, já aqui conosco, o despertar num ambiente estranho, envolta em curativos e cercada de pessoas nunca antes vistas por você.
Além do ambiente estranho, das dores, dos curativos; os calafrios das febres, o mal estar vindo quase todos os dias após a cessação da ação das drogas usadas na anestesia geral, o desconforto de evacuar no leito em fraldas, as assaduras, as punçoes diárias para exames laboratoriais.
 Ainda, o que tanto a incomodava, a sonda nasoenteral passada em uma das narinas, perpassando a garganta, o estômago e indo até porções iniciais do intestino delgado. A sonda fixada ali na face para evitar que saísse ou que sua mãozinha envolta em ataduras do curativo, conseguisse tirar.
Lentamente fomos deixando de ser estranhos para você, lentamente o ambiente foi se tornando seu ambiente, pouco a pouco fomos nos ligando a você até que não conseguimos mais nos conter e passamos a gostar de você com um amor que não convém aos corações quando uma incerteza tão grande está rondando. Quando o impossível está presente e vai lentamente crescendo e se tornando maior que o possível. Maior que nossas forças, que o poder das drogas terapêuticas, que a ação dos aparelhos, maior que todas a capacidades ali reunidas, mais forte que nossas preces e toda nossa dedicação.
Finalmente, como aquele Pequeno Príncipe de Exupéry, você partiu para um mundo encantado de Deus, onde talvez não haja saudades, nem sustos, nem dores, nem sofrimentos. Onde reinações de crianças nunca se tornem tragédias.
Nós, aqui ficamos em nossa perplexidade, amargando a perda e pesarosos. Refletindo, decepcionados, na incapacidade humana de lidar com coisas tão complexas como a vida.
Rilmar   - 01/02/2019




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