terça-feira, 31 de março de 2020

ARANHA E O ESCORPIÃO

Histórias Possíveis

A grande aventura e a grande emoção, muitas vezes se confundem. Pode acontecer nos mais variados ambientes. A movimentação pode ser intensa, moderada ou discretíssima. Sim, é isso mesmo, pode ser quase estática. Não inerte; já que vivemos a bordo de uma imensa nave que se desloca pela imensidão; e, no universo, tudo se move.
Quando no microscópio quieto e mudo, Pasteur observava uma lâmina de tartarato cristalizado, notou de repente que havia ali dois tipos diferentes de cristais, parecidíssimos, quase iguais, mas que eram, na verdade, imagens no espelho uns dos outros. Preparado como era, conseguiu deduzir que estava diante de cristais que se separados, poderiam apresentar muitas propriedades que ainda mais os diferenciariam. E foi o que acabou provando. Uns tinham a capacidade de desviar a luz polarizada para a direita e outros, para a esquerda. Quieto, sentado, atento viveu ali um de suas mais emocionantes aventuras. Chamou-os: dextrógiros, levógiros e à mistura, racemato. Testes com diluições de uns e de outros, levou-o a perceber que as propriedades se mantinham, daí concluiu que eram propriedades das moléculas do tartarato – viveu ali, sua primeira grande aventura no mundo científico, à qual muitas outras se seguiriam.
De outra feita, uma aranha estava para ser apanhada por um escorpião e lançava um tênue fio na esperança de que o vento o levasse e o ancorasse numa janela do outro lado do beco. O escorpião, convicto de que venceria e garantiria o seu almoço; aproximava-se lenta e terrivelmente, com as tenazes prontas para segurá-la e o ferrão aguçado, alto, ameaçador, apenas aguardando rápidas mensagens nervosas para o ato final.
A aranhazinha, coitada, tremia, se apegava com Deus e os anjos protetores das aracnídeas (já que aracnídeo, o escorpião também o é), numa oração assim: Senhor, dai de comer aquém tem fome, mas não me dês que sou nova e queria experimentar um pouco mais a vida. Dai sorte a quem dela precisa – e eu preciso tanto...
Oh, Senhor! Tirai esse escorpiãozão aí da minha frente, se não, eu estou perdida. Se quereis um milagre mais leve, mandai um ventinho favorável para que meu fio alcance a janela.
Orava contrita, elevando as duas patas dianteiras juntas e volvendo misericordioso olhar aos céus.
E, nada de vento, nem ventinho. Calmaria total; maior que as das costas da África que, no afã de evita-las, fizeram Cabral aportar por aqui.
Só dava escorpiãozão andando, ameaçador.
Senhor, continuava a aranhazinha, se não for possível ancorar meu fio ao longe, nem mandar um ventinho a tempo, nem tirar esse monstro pré-histórico daí, Senhor: Aplacai-lhe a forme para que desista, paralizai-o para que eu fuja, enfartai-lhe o coração, acidentai-lhe o cérebro, amputai-lhe o ferrão...
Senhor, eu quero viver!
Tenazes em riste, corpo reto, pernas dobradas para fora achatando o corpo contra o solo que lhes servia de palco; cauda curvada para cima... Terrível... terribilíssimo se visto da posição dela.
Oh Senhor, prestai bem atenção nele Senhor... Ele está gordão e barrigudo e, acho que nem tem muita fome. Senhor, esse camarada vai me comer só de gulodice!...
E o escorpião sempre vindo... vindo.
E a aranhazinha recuando, orando, oferecendo novas ideias a Deus e prestando a maior atenção do mundo a cada passo, cada gesto, cada movimento do inimigo, sem se distrair do cenário em volta que é de onde ela mais esperava um socorro.
Perto, muito perto, quando já quase poderia alcançá-la o escorpião parou um instante; talvez para um último estudo; uma última avaliação; para certificar-se se a vítima compensava o esforço de uma luta que seria provavelmente rápida, mas consumiria energia e doses de veneno que poderiam fazer falta para um outro embate ocasional qualquer.
Seja pelos motivos atrás, ou porque aquela aranha de mãos postas e a conversar com o céu, se comportava de maneira tão estranha; o fato é que houve um titubeio, uma hesitação.
Quando não havia mais o que fazer, nem mais tempo para rezas ou novas sugestões, uma leve viração soprou e levou, mansamente a navegar pelos ares até ancorar-se em ponto seguro, o fio da aranha, a qual pulou rápido, encolhendo as pernas de medo de ser alcançada.
E teve toda a razão para se encolher a aranhazinha, visto que o escorpião, inconformado com a providência Divina, ainda tentou de todas as formas alcançar a quase vítima. Esticou-se todo, manobrou pernas, tenazes, cauda assassina e postou-se à beira do parapeito onde se encontrava, de maneira a segurar-se nas pontinhas das unhas e com o gancho-ferrão, último segmento da cauda, tentar pescar o fio e com ele a apavorada aranha.
Mas qual, adivinhando-lhe a intenção, a frágil aranhazinha recomeu ou enrolou (não sei bem, já não ando lá essas coisas das vistas) um bocado do fio e já começou a alegrar-se e a pensar em como iria contar tudo aquilo nas rodas de aranhas. Pensando já saboreava a admiração, os tapinhas nas costas e a inveja de muita gente, digo, de muito bicho.
É bem verdade que poderiam acusa-la de não ter tido ação nenhuma na aventura, ao que retrucaria dizendo: E quem foi que lançou o fiozinho para a ação Divina, quem foi que ficou firme esperando, observando e, na hora precisa saltou?...
Foi ela, que teve medo mas teve coragem também, e teve fé, sangue frio e argumentos para convencer o Senhor a modificar o final de um ato que já estava escrito, conforme ela pensava.
Por tudo isso sobreviveu a uma grande aventura.
Fim Rilmar (1985?)
Editar
1 DE SETEMBRO

Nenhum comentário:

Postar um comentário