segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

CECELI



Relato a vocês o conteúdo de algumas cartas que nos trazem uma história que julgo verdadeira, já que contida em cartas tão antigas, em papéis tão ressecados e amarelados pelo tempo, que só consegui recuperar com auxílio de iluminação especial e instrumentos óticos; também porque a letra é de talhe firme e favorece à leitura.

Acaba sendo um teste de paciência e tolerância, pois terei que relatar em três ou quatro capítulos, à guisa de folhetins, pois são quatro ou cinco cartas e a primeira é um pouco longa.

Posso considerar que estamos de acordo? Sim?... Então começo agora e, a cada dois dias publico mais trechos e, em uma semana teremos o desfecho.



Caro Sr.

Conselheiro Sentimental da

Mais Ouvida do Brasil;



Em primeiro lugar devo confessar que sempre achei profundamente ridículo programas como o seu, onde confissões detalhadas das mais inconfessáveis fraquezas; revelações dos mais íntimos dos nossos pecados, relatos humilhantes das mais vexatórias situações vividas; insucessos deprimentes; atitudes execráveis; onde, enfim, tudo o que sendo secreto já nos dói tanto; é tornado público e secundado, ora por um conselho animador, mas sempre inútil, ora por uma reprimenda que credencia o programa para ouvidos desavisados, mas acaba por crucificar o pobre e desesperado ouvinte apelante.

Então, fico a me perguntar; se tenho essa visão tão clara e tão desfavorável a respeito de seu consultório sentimental, por que é que estou aqui a mal traçar essas linhas que tenciono enviar-lhe, tão pronto as conclua?...

Ocorre que meu caso é tão inusitado e desproporcional, que sozinho não consigo equacioná-lo e não me animo a revela-lo nem mesmo, ao meu melhor amigo. Tão pouco estou conseguindo conviver com ele incrustado aqui na minha alma, dentro do peito, apertando o coração, perfundindo difusamente meus hemisférios cerebrais e me levando à obsessão.

E, por que é que ao sr. eu posso contar tudo e pedir que me oriente?

Porque o sr. Está distante e é para mim quase que somente uma voz que sai do rádio e que eu posso interromper ao meu bel prazer; porque posso usar um pseudônimo e me proteger do escárnio público; porque o meu compromisso com a verdade fica sendo apenas relativo: pseudo nome, história passível de benevolentes ajustes sem que se torne falsa; ambientação conforme a memória e, aqui e ali, algumas fantasias. Devo ressaltar, antes que em um ímpeto de fúria o sr. Rasque minha carta e a incinere, que não tenho também qualquer compromisso com a mentira e que o intento que me impele a procura-lo é filho da verdade.

Deixe-me ser mais claro. É decisivo para minha resolução de escrever, que paire uma enorme dúvida sobre a veracidade de tudo o que eu disser. As entrelinhas, essas sim, estarão em todo o correr das cartas, revelando uma alma sofrida e enferma; um coração combalido por esse sofrer tão longo, tão fundo, tão doce. Revelarão, por certo, e finalmente, um ser humano tão desumanamente tratado só porque ama como Jesus recomendou; Deus o estruturou para tal; a natureza o acicatou por dentro e por fora para que o fizesse e, finalmente, as estruturas sócio-culturais-religiosas se uniram para impedir que essa paixão se consuma.

Reconheço que o desenrolar destas ideias está um pouco complicado, mas tenha um pouco de paciência e procure extrair do que vou dizendo, um pensamento conciso, uma ideia clara. Considere o seu compromisso com os ouvintes, a minha necessidade de uma palavra amiga e sábia e, também, aproveite o texto confuso para diagnosticar, por trás dele, um alguém, já de natureza complexo e confuso e que agora, envolto e imerso numa paixão tão avassaladora quanto espúria, sente-se infestado por anjos e demônios que arrastam de vez sua precária lucidez para o caos total. Tudo porque enquanto os anjos dão-lhe conselhos edificantes que nada o ajudam na realização de seu sonho de amor; os demônios por sua vez o encorajam mostrando-lhe caminhos para a consumação do desejo. Duvidosos caminhos, pecaminosos conselhos, inaceitáveis decisões.

Sou fervoroso crente em Deus. Persigno-me todas as vezes que passo por uma igreja. Rezo para dormir. Vou à missa regularmente. Não perco

ocasião para rezar e oferecer ao Senhor. Sou homem bom, trabalhador, tolerante, preocupado com meu próximo. Quero dizer com tudo isso, que me suponho em paz com Deus, não merecedor de castigos e que Deus me conhecendo tão bem, não precisava me submeter a tentação tão grande.

É, mas Deus deixou que eu olhasse aquele rosto branco e rosado, aqueles olhos pretos e luminosos, aquelas mãos tão delicadas comprimindo um crucifixo de prata. Naquele momento, tudo o que vi foi isso, acrescido de uma expressão, uma comunicação mágica, que saindo daqueles olhos, daquele olhar, me encantaram como o canto das sereias. Aquela luz, aquela essência, me encheram de uma tristeza doce e uma saudade melancólica que se manifestou mesmo quando ela ainda estava ali tão perto e me invadia os olhos com um olhar que, na realidade, pretendia era marcar para sempre minha alma.

O momento realmente era propício à uma comunhão de almas. Orávamos com fervor e nossos pensamentos vagavam em regiões transcendentais. Tudo ali favoreceu um diálogo de almas tão íntimo, tão sacrossanto e elevado, que a memória que ficou em nós, não são lembranças nem testemunho, é tão somente, esse incontrolável sentimento que me faz ousado e inconsequente enquanto a ela, rosa bela e delicada, faz sofrer; não mais que eu, por ter que se manter fiel ao seus votos, à sua entrega plena a Jesus e, ao mesmo tempo, me manter distante, sem matar em mim uma esperança e, em minha alma, a certeza de que nascemos um a procura do outro.

A essas alturas o sr. Deve estar querendo saber, de uma forma mais direta, o que se fez e o que se deixou de fazer; até onde avancei; até que ponto nos expus com meus atos mais intrépidos.

Como já disse; de frente mesmo; cara a cara; sem rodeios, não dá para contar. Há que se ter paciência e ir colhendo na filtragem do que digo, na interpretação do relato, o que houve ou deixou de haver.

Mas, houve!

(aguardem; sejam paciente com essa alma)...







CECELI - (parte II)

(..... o que houve ou deixou de haver.

Mas houve!) ......

Foi, com certeza, por orientação do enxame de demônios que me haviam invadido e me assessoravam.

Passando pelo fundo do convento que era onde ela, bela e beatífica, se abrigava das tentações mundanas; adivinhei sua presença no amplo quintal cujo muro do fundo dava para a rua de pouquíssimo movimento, onde nessa hora eu passava. Ouvindo uma voz entoada, bela e educada cantando um ‘Va Piensero’ que eu nunca dantes suspeitara fosse tão lindo, reconheci que era ela quem cantava pois já a ouvira cantar, certo dia na igreja.

Olhei a rua de cima a baixo e não vinha ninguém.

Procurei alguma coisa para subir e olhar por cima do muro. Encontrei umas pedras grandes, uns tijolos e um caixote velho. Com eles improvisei uma bancada na beira do muro.

Encarapitado na tal bancada pude ver o quintal. Lá estava ela fresca e viçosa como uma flor; cantando feliz, como que mergulhada em devaneios. Cantava e pendurava umas roupas nos arames que se estendiam por quase todo o quintal. Fiquei a olhar maravilhado, aquele anjo de candura e inocência que ia e vinha ao longo do arame, cantando sem me notar.

Aí, num rasgo de audácia e imprudência; empurrado pelo amor, pela paixão que me consumia, não me contive e chamei pelo seu nome – Cely!...

A voz que cantava calou, o anjo virou mulher e a mulher, sem perder os atributos angelicais, ganhou nuances e modos que a tornaram de vez, irresistível.

Algo zangada, meio confusa, ela se aproximou do muro e de novo nossos olhos se falaram.

Dois adolescentes...

Tornei a dizer seu nome: - Cely!

Talvez com medo de que me ouvissem e isso complicasse demais a sua vida no convento, ela levou o indicador à frente dos lábios pedindo silêncio e tentou, meio desequilibrada, subir numa escadinha que estava junto ao muro. Mesmo estando do lado de fora eu estendi a mão para ajudá-la e segurei seu braço, enquanto sua mãozinha frágil, um tanto fria, e delicada também segurou-se em meu braço.

A emoção roubava-me o fôlego, o coração dava saltos no meu peito, o amor me empurrou e, os demônios que digladiavam com anjos dentro de mim; sentiram o momento e me encorajaram para que a puxasse para mim e a beijasse com sofreguidão e sem planejamento nem permissão.

Ora, um beijo sôfrego, por cima do muro e sem premeditação, não chega a ser qualitativamente um grande beijo. É mais um comprimir de bocas. No entanto foi assim nosso primeiro beijo: O mais inesquecível beijo; cheio de pecado, pleno de emoção e, a despeito de roubado, devastador para a pureza de sua consciência. Ao menos por um breve momento ela deve ter me odiado. Nos afastamos, cada um com suas tempestades de emoções sacudindo intensamente cada mínimo detalhe de suas estruturas.

Se houve mais alguma coisa?...

Houve, mas vamos dar tempo ao tempo e eu vou me encorajando e contando aos poucos.

Dias depois a vi na missa. Estava ajoelhada e rezava numa atitude de absoluta fé e contrição. Falava com Deus e seus lábios róseos se movimentavam encantadoramente no balbucio das preces. Isso só já conseguia me inquietar e fazer meu coração bater forte e descompassado.

A certa altura, sem interromper a prece, seus olhos se abriram por um instante e me fitaram.

Não sei se posso dizer isso, mas havia um pouco de Deus nos seus olhos, tenho certeza que sim.

Só um instante durou aquele inebriante contato entre o mortal e divindade; seus olhos novamente se cerraram enquanto o meus se anuviaram com duas lágrimas arrancadas do fundo da alma.

Rezei também com todo o fervor, pedindo a Deus uma ajuda, pois ele; diferentemente das igrejas, sem nada querer para si, sem compromissos com dogmas e hierarquias, sendo capaz de sentir os sentimentos de suas criaturas; poderia, num ato de bondade e coerência, conceder às nossas almas esse primaríssimo direito de se unirem, vez que já se haviam escolhido.

Assim foi a minha prece:

- Senhor!...

Concede-nos a graça de partilhamos nossas vidas, de atender esse anseio, de acalmar esse amor. Permite, Pai, que essa tua obreira possa realizar outros desígnios; que como apascentadora de minha alma, depositária fiel de meu amor, encanto de minha vida, genitora e guardiã de nossa prole, companheira inseparável, nesta e em outras vidas, deste filho que não pede por seus méritos, mas por tua bondade; concede Pai, que na realização destes desígnios ela possa estar fazendo a Tua vontade.

E, se neste momento em que a fé toma conta de meu ser e a emoção domina minha mente; eu estiver pecando por ousadia excessiva; peço-Te clemência e compreensão. Peço, ainda, luz que ilumine para nós os verdadeiros caminhos ainda que, por infortúnio meu, não sejam os que imagino.

E, por último, Senhor, atrevo-me a pedir-Te; pelo teu sim ou pelo teu não; que afaste de dentro de mim esse enxame de anjos e demônios que se digladiam e deblateram sem me conduzir nem me orientar com clareza.

Amém.

No instante em que encerrava minha prece, ouvi novamente o ‘Va Piensero’ vindo do alto da nave, entoado pelo coro da igreja e, no meio das vozes, conseguia vez por outra, identificar a voz dela.

Ao abrir os olhos eu já sabia que não a iria encontrar mais onde estivera até que me pus a conversar com Deus.

O sr. Já morou em cidade pequena?... Não?... Pois nem queira.

Em cidade pequena nada fica escondido. Nem mesmo um beijo furtado por cima do muro em uma rua vazia.

Não há de ver que nosso mais que furtivo encontro teve testemunha?!...

Quem foi, não sei, mas o fato é que uma semana depois, quando eu até já planejava outra investida heroica e inconsequente ao muro do convento, fui chamado para uma conversa com o bispo; o que de pronto me deixou bambo em cima das pernas. Depois me acalmei e comecei a admitir que podia até ser essa minha chance de me abrir sinceramente com sua eminência e, então, usufruir da compreensão e bondade tão apregoadas por todas as igrejas.

Acaso seria essa a forma que Deus concebeu para intervir e tornar possível uma tão difícil quanto desejada união?!...

Não, não foi.

O bispo, ladeado por monsenhores e padres, à guisa de um Tribunal de Inquisição; me arrasou. Tratou-me com uma dureza demoníaca. Enquadrou-me como infrator de oito ou nove dos Dez Mandamentos. Detratou os nossos sublimes sentimentos chamando-os de vergonhosa luxúria, qualificando o nosso amor como artimanhas do capeta, que fazia de mim um instrumento de tentação para uma alma cujo verdadeiro anseio era se entregar a Deus por toda a vida.

Ouvi tudo em silente revolta; pois em nenhum momento me deixaram falar.

Depois de me arrasarem, de denegrirem nosso amor, de exaltarem a excelsitude da igreja e ressaltarem, em coro, a sublimidade da missão que cumprem no mundo as Irmãs de Caridade; despejaram sobre mim tantas e tão grandes ameaças, que quando me permitiram sair dali, o que se retirou já não fui eu, foi um farrapo de gente., foi pouco mais que o pó a que um dia todos nós tornaremos.

Esculhambaram-me, trituraram-me, envergonharam-me profundamente, mas cometeram uma falha e nessa falha é que, com certeza, estava o dedo de Deus: Esqueceram-se de me excomungar.

Cor contritum et humlhatum Deus non despicies.

Se Deus não me dispensava, sabendo ser meu coração contrito e humilhado, então eu podia entrar na sua casa. Na casa de Deus, a igreja.

Voltei a vê-la, e quando a vi, renasci das cinzas, e renasci com outra consciência de meus atos; com uma visão renovada e clara do distanciamento que há entre Deus e as religiões. Aquele amor não tinha que pedir permissão aos homens para existir. Entre eu e Deus tudo estava dito e Ele não me repreendeu, não apagou no meu peito a sarça ardente dessa compulsão, não tirou dos olhos dela a emanação luminosa que, passando por mim, ia falar direto à minha alma.

E o ser renascido em que me tornei, saiu de onde estava e se ajoelhou ao lado dela e, ignorando os espantos, disse-lhe todas as coisas que trazia presas no peito. Falou de amor longa e loucamente sem elevar a voz além de um sussurro, falou da beleza dela, de sua candura, de sua voz, de seus lábios rosados, de seus brancos dentes, da luz de seu olhar e do lampejo divino que ele viu em seus olhos um certo dia na missa.

Ela ouviu, ouviu e depois chorou plácida e maravilhosamente. Olhou-o com a intensidade e franqueza de quem confessa um grande amor. Depois, num sussurro quase inaudível, declarou com num balbucio dos lábios o mesmo grandioso amor. Por fim, levantou-se e seguiu, cabisbaixa e lentamente, as outras freiras que se retiravam.

Desde então não a tenho visto. Já se vão três longos meses.

Que devo fazer?

Subir no muro de quando em vez para ver se a vejo?

Queixar-me ao Papa?...

Fundar uma igreja paralela para adquirir poder de negociação?

Invadir o convento e tentar tirá-la de lá à força? (loucura).

Ficar estático (em cima do muro) aguardando melhores dias?

Na expectativa de uma orientação, aqui me ponho à sua disposição para qualquer esclarecimento que se faça necessário.

No aguardo e ansioso.

(a seguir, Segunda Missiva)













CECELI - (3ª parte)

Segunda Missiva



Sr. Da Mais Ouvida;

Tenho ouvido diariamente o seu prestigiado programa e não escutei, até agora, qualquer referência à minha carta. – Aquela onde, em mal traçadas linhas, eu contei minha aventura e desventuras no confronto com as tradições da Igreja Católica.

O tempo não para e os acontecimentos se sucedem. A cada minuto que passa, aqui no meu peito um coração abatido pulsa setenta a oitenta vezes enquanto que, entremeando suspiros, meus pulmões inflam e desinflam dezesseis a dezoito vezes. Só minha alma é que não sossega; vive numa lamúria triste e sem fim.

Quanto a Cely, razão desses lamentos, eu voltei a vê-la duas ou três vezes. Na primeira eu a vi sem que ela me visse: Subi numa mangueira sombria e frondosa que fica perto do convento e fiquei de tocaia por cerca de três a quatro horas (coisas que o amor nos faz fazer), até que, em certo momento, a vi andando pelo quintal, como se tomasse um pouco de sol. Estava muito pálida e caminhava vagarosamente de braços cruzados na frente à altura da cintura. Pareceu-me que meditava. Sua palidez encheu-me de preocupações; estaria enclausurada?

A segunda vez foi na entrada da igreja, quando a confraria adentrava o templo num culto só para freiras ou futuras freiras. Desta vez Deus me concedeu novamente a graça do olhar dela. Estava realmente um tanto pálida e seus olhos se destacavam ainda mais, sendo negros e brilhantes, em meio àquele rosto mais branco ainda e sempre angelical. Pude ler em seu olhar que a chama permanecia acesa, li também um grande sofrimento.

A terceira ocasião em que pude vê-la, propiciou-nos um contato imediato do terceiro grau. Vi-a, flertei descaradamente com ela e trocamos algumas palavras que definitivamente encheram-me de uma quase certeza de que esse amor que me arrebata e alucina, segue sendo nela, tão grande e irresistível quanto em mim.

Foi num supermercado, havia muito movimento e o quarteto de freiras que entrou, teve que se desfazer por causa da multidão que não lhes permitia andarem atreladas umas às outras pelos braços, como era costume delas fazerem. Em dado momento, Cely se distanciou das demais e eu pude falar com ela. Ouvi muito e falei pouco. Jurou-me seu amor; falou-me de seus compromissos e de sua grande paz interior. O que queria dizer que não se sentia culpada diante do Cristo.

Meu ego, até que melhorou com a declaração de amor que dela ouvi.

O que piorou demais foi minha impaciência nessa espera. Reavivou de vez, aqui dentro, um fogo que eu já tinha sob controle.

Aguardo pois, análise e respostas urgentes.

A seguir, Terceira missiva)




Terceira Missiva
Sr. Conselheiro;
Vá dar conselhos mal assim lá na China!
O sr. Concordou com o bispo em tudo o que o maldito fez comigo e com o que, suponho, tenha feito a ela? O que é que há? Sua emissora tem uma ideologia coincidente com a da igreja? Os usos e costumes Vão ser abalados? O bispo é parente seu?!
Fique, pois, com sua ideologia tacanha e seus conselhos facciosos. Minha opinião a respeito de seu programa segue sendo a pior possível. Não volto a escrever-lhe nunca mais; nem que a coruja berre!
Xxxxx
Aos que vinham acompanhando meu drama pelo rádio, deixo aqui um relato para que não fiquem prejudicados.
Inconformado com a situação, ocorreu-me procurar a família de Irmã Cely e ver se neles eu encontrava algum apoio.
Moravam numa cidade próxima e não tive dificuldade em localizá-los.
Pessoas educadas e de fino trato. Seu pai era médico e tinha, por seus estudos e vivências, um profundo respeito pelos sentimentos humanos. Conversamos longamente e pude saber que o recolhimento de Cely ao convento não era do agrado da família. Fora uma resolução dela, que eles tão somente respeitaram.
- Temos uma visita marcada para a próxima semana, disse-me seu pai, e, na ocasião conversaremos com ela a respeito. Vale dizer, no entanto que para sair de lá, ela tem que manifestar firmemente esse desejo perante um conselho, o qual, certamente, a convidará a recolher-se e meditar profundamente quanto à sua decisão. De certa forma haverá pressões no sentido de demovê-la de tal intento. Longa e profunda meditação, será certamente exigida!
Depois ela deve reafirmar sua decisão e aguardar a palavra do conselho.
Voltei para casa e fiquei aguardando ansioso e inconformado com a demora. Enquanto esperava; pensava, temia e orava com o fervor desesperado dos que amam.
O DEDO DE DEUS:
Cely dormia. Seu sono era profundo e calmo. Em sua alma existiam muito mais dúvidas que certezas. Estava psíquica e fisicamente exausta. Então principiou a sonhar um sonho lindo e repousante: Campos verdes e floridos se estendiam até o horizonte. A calma, o vento suave, os sons de aves, a luz intensa e seu estado de alma; sentia em tudo a presença do Criador. Num certo momento, sem que o encantamento se quebrasse; foi, num crescendo e lentamente, ouvindo uma voz a dizer: - Irmã Cely... sê Cely!
- Ama!... Diante de ti sempre surgirão grandes e pequenas oportunidades de servir. Ouve a alma. Servir a Deus não implica em abrir mão do existir, do viver, da busca da alegria, de vivência plena do amor.
- Irmã Cely... sê Cely!...
Quarta Missiva
Caro conselheiro; a coruja está muda.
Não retiro nada do que disse na carta anterior, mas volto a escrever para dar-lhe derradeiras informações.
Deus realmente existe. Considere sempre isto.
Após o conselho Dele para que irmã Cely passasse a ser Cely, como ela própria ouviu em sonho, Cely não teve mais dúvidas e apresentou-se ao conselho devidamente pensada e meditada, dizendo que se decidira a expor-se ao mundo e ainda assim continuar profundamente ligada a Deus e cumprindo seus desígnios.
- Recolher-me é como fugir da vida. Com minha força e lucidez, sinto que saberei separar as boas das más tentações. Às más eu resistirei com minha força; diante das boas eu saberei me moderar para vive-las sem culpa.
E muito mais disse porque muito lhe foi perguntado; e muito argumentou porque muito lhe foi cobrado. Na sua fala mostrou sempre firmeza e decisão. Foi firme e decidida sem deixar de ser gentil; defendeu seu novo modo de encarar a fé sem ferir susceptibilidades; foi concisa, amena e convincente.
Ao final da reunião ela se retirou e ficou aguardando a palavra do conselho. Queria sair como entrou: pela porta da frente, de cabeça erguida e com direito às suas convicções.
A Liberação Aconteceu!
Liberada dos votos, Cely voltou à casa de seus pais e, pouco tempo depois, iniciou, com a assistência de um advogado, um processo para alteração de seu nome. Queria doravante e para sempre, como testemunho do som que ouvira em sonho; - Sê Cely; não apenas ser Cely, mas CECELY, conforme ouvira. E tudo foi feito conforme a vontade de Deus que a inspirou.
Eu, que renasci das cinzas naquele dia distante durante a missa, e ela devolvida à vida efêmera dos profanos; nos unimos na igreja e sob as bênçãos de Deus. Muito nos amamos, muito nos olhamos, nos tocamos, nos compreendemos. Seu olhar, seu sorriso, seus gestos, o som mavioso de sua voz, a ternura encantadora que me dá; tudo isso eterniza nosso amor que é uma chama cada vez mais luminosa.
DEO GRATIAS
(1992 – rilmar)

Nenhum comentário:

Postar um comentário