domingo, 22 de agosto de 2010

Meu pai, perfeito como eu

Há algum tempo, aos noventa e três anos, ele partiu para uma viagem sem volta ao encontro de minha mãe, com destino à eternidade.


Tão agarrado à vida, uma vida que lhe foi tão árdua, tão sofrida, tão cheia de altos e baixos.
Tão frágil, tão submisso, tão entregue; ele que foi na vida fortaleza, disciplina, hombridade, sistemático, liderança e inteligência.

Não morreu nos meus braços como talvez fosse a vontade dele, morreu ao lado de uma minha irmã que lhe deu mais amor do que qualquer um de seus filhos que são muitos. Findou-se como uma chama que vai se enfraquecendo lentamente através dos anos derradeiros até que, em certo momento, bruxuleia, treme, perde lentamente o restinho de fulgor e finalmente se extingue e parte na direção do infinito.

Ao seu lado estava ela, a filha que mais sofreu sua perda, a que deixava tudo para acudi-lo, para assisti-lo com infinita paciência, dedicação e eficiência. Foi talvez por isso que Deus a escolheu para o angustiante momento do desenlace.

Só Deus sabe o porquê de suas decisões!

Não podendo medir seus temores, seus horrores, suas fraquezas ou sua fortaleza; não posso analisá-lo, pai, sem ser injusto e impreciso.

Para mim você sempre foi e será um forte; um esteio de minha existência. Um pai enérgico, capaz de corrigir e até ser injusto, mas que sempre me norteou e, com maior ou menor punição era o muro onde meus erros esbarravam e se desfaziam. Acertadas as contas com você, eu estava certo com o mundo. Você cuidava de minha vida.

Você foi estruturado num mundo de ascetas. De muito fazer, pouco ter, obediência silente e respeitosa, de achar tudo justo.

O rigor com que a vida o tratou, as asperezas de seus caminhos, os intransponíveis obstáculos diante do menino que não podia se desviar nem desistir, não tinham como não marcar-lhe a alma profundamente.

O código de ética da sociedade de sua época e do interior de Goiás; as tradições de família que impunham uma hierarquia forte, dura, imutável e vigilante.

O Deus da época que vigiava e punia a todo instante e em qualquer lugar; as assombrações que aterrorizavam; os demônios que cobravam sua parte em qualquer prazer experimentado; tudo oprimia e enrijecia as gentes.

Sua Inteligência invejável devia levá-lo a muitas interpretações de tudo que o cercava; de tudo o que lhe impingiam, mas não havia parâmetros alcançáveis, mundos para serem comparados visto que a comunicação era exígua: nem TV, nem rádio, raríssimos jornais. Nas escolas ainda não se discutia a vida, mas tão somente se decoravam coisas; meio de transporte rudimentar e vagaroso eram o carro de bois, a carroça e o cavalo. Os horizontes eram, assim, muito limitados e de difícil transposição.

Viver do próprio trabalho, embora os adultos não reconhecessem, era desde o momento em que as forças já dessem para fazer alguma coisa e a mente capacitasse a obedecer.

Uma criança de oito anos, ou menos, já trabalhava do nascer ao por do sol.

Punições vinham a toda hora.

Elogios só para o trabalho e a obediência cega.

Opressão para idéias, palpites e criatividade.

O homem tinha que ser macho a toda prova, mas sexo era indecência, pecado, falta de caráter.

Sim, meu pai, esse era o seu mundo com suas regras.

Aos quatorze anos você viajava sozinho montado em um cavalo indo de cidade em cidade levando correspondências, fazendo entregas. Viagens com chuva ou sol, frio ou calor, noites escuras como breu e dias de chuva ou de sol, mas sempre com muito cansaço e grande solidão.

Imagino você num mundo cheio de fantasmas, capetas, onças, lobos, e mesmo pequenos animais que sem serem perigosos surgiam na noite, de repente, causando grandes sustos. O cavalo refugava, o coração dava saltos no peito; a mente chamava desesperada algum santo do céu estrelado; mas o medo era engolido e você seguia em frente, impregnado de cansaço, animado pela vontade de chegar ao pouso, no mais das vezes apenas um rancho sem ninguém dentro e onde barbeiros e morcegos esperavam impacientes.

Mais do que ser forte, corajoso e tenaz; era necessário ser imbatível e ter orgulho do que fazia.

Mais tarde, com menos de vinte anos, você comandava tropas levando bois de Palmeiras a Barretos; setecentos quilômetros, ou mais ; percorridos à cavalo, lidando com gente, disciplinando, administrando e cuidando de tudo para manter o grupo em harmonia e fazer a entrega na data marcada.

Você conseguia porque era exemplo em sua conduta obstinada e rígida, mais consigo mesmo, do que com o restante da tropa.

Depois veio o exército no tempo da ditadura Vargas, onde pátria, hierarquia, disciplina e honra vinham antes de tudo. Pátria era algo concreto que não dependia de se impregnar o indivíduo da necessidade de amá-la. Os outro itens eram pregados, ditos, repetidos e exigidos até que se tornassem parte do pensamento, da conduta, da própria vida.

Então, um dia, surgiu minha mãe com sua doçura, sua beleza, sua meiguice e o encantou. Também ela encantou-se com sua força, seu porte físico, seus olhos azuis. Minha mãe era a ternura, a doçura que precisava de uma mão forte para ampará-la. Você, o homem enrijecido pelo tempo e a vida, precisava da afabilidade e a ternura daquela morena de cabelos negros e ondulados e de sorriso encantador e que além de bela e graciosa, era inteligente e culta.

Dessa união nasceram onze filhos entre homens e mulheres, dos quais nove sobreviveram. Não faço a menor idéia de como seria possível criar tão numerosa prole nos dias de hoje e menos ainda naqueles dias.

Foram muitos os percalços, os momentos felizes e os de dificuldade e até de desespero.

No dia em que minha mãe morreu, o mundo ruiu. Ruiu para mim, para todas as pessoas da casa e ruiu para você. Esse verbo é muito mais suave quando o lemos do que quando o vivemos. Cada um de nós foi destruído social e psiquicamente. Você também foi. Não há como qualquer um de nós aquilatar o quanto essa falta foi capaz de destroçar o coração e a alma de cada um; de infelicitar irremediavelmente pelo resto da existência, cada um de nós; de fragilizar, de deprimir, de desanimar, de desesperar, de desamparar.

Cinqüenta anos se passaram e eu ainda não voltei a ser o mesmo. Não posso, pois, exigir isso de ninguém.

Agora que você partiu, e passado algum tempo, parei para essa reflexão e gostaria de ter-lhe dito muito mais vezes que o amei e amo com o amor do filho que tudo fez para brilhar, para merecer sua admiração e seu orgulho. Depois que vivi e fui intensamente testado pela vida; sofri e vi pessoas sofrerem, ganhei, perdi, tive êxitos e falhas; depois de um amadurecimento ocorrido a duríssimas penas; sou capaz de imaginar o quanto a vida foi dura com você.

Quero guardar de nós dois, na lembrança, os melhores momentos nossos. As pescarias, os casos que você contava de sua vida, os bons momentos de você com minha mãe e nós; as vezes em que eu o visitava na sua casinha, já na sua viuvez, a euforia que vivi ao enviar-lhe o telegrama dizendo que eu passara no vestibular de medicina e o dia em que você foi ao baile de minha formatura numa noite fria na beira do lago do Paranoá.

Talvez Deus exista e conceda-nos um reencontro numa outra dimensão onde com minha mãe e todos nossos entes queridos conheçamos a convivência plena onde o amor se expresse pela alegria irradiada em cada gesto, em cada riso, em cada olhar; pelo prazer de estarmos juntos.
22.08.2010 ---- Rilmar

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Um Lobisomem na Noite

Um lobisomem pode ter coisas a nos ensinar

Em noite chuvosa, barulhenta, tempestuosa eu ouvi por entre os estrondos dos trovões e o ruflar pesado da chuva forte, uns barulhos diferentes de tropeços e lamúria, como que vindo do meu quintal escuro e ensopado. Então, destramelei a porta da cozinha que se abriu por si mesma com a força do vento, o qual entrou forte, frio e molhado e, num instante, encharcou minha roupa e meus sapatos.

Meio encolhido, meio com medo e tentando enxergar aproveitando os clarões momentâneos dos relâmpagos, avancei cuidadoso pelo quintal.

Avançara já uns cem metros quando deparei com um vulto encolhido que grunhia e tremia entanguido de frio.

Era um pobre Lobisomem, marginalizado, enregelado e talvez doente!

Ali estava ele, lendário, concreto, real, carente e muito sofrido.Olhei-o, a princípio, transido de horror, mas, logo a seguir, ao perceber sua humílima atitude e a expressão humana de seu rosto; enchi-me de pena e num rompante de solidariedade arrisquei-me a convidá-lo com um gesto para que me seguisse.

Já em casa, atirei-lhe uma grossa toalha, cobertores, e ele se encolheu perto do fogo e logo adormeceu. Meio confuso, fechei por cuidado a porta que separava a cozinha do resto da casa e fui para o meu quarto. Já deitado, fiquei por longas horas pensando naquele pobre ser que na minha infância povoara, como outros, minha imaginação. E que era tão temível, tão poderoso, assustador e, agora, concreto como
eu ou a minha cama, ali estava acocorado no rabo do fogão encolhido trêmulo e cansado.

Que andariam fazendo os lobisomens, os currupiras e tantos outros seres que outrora, antes da bomba atômica, do Sky Lab, da poluição, da ameaça de falta de alimentos e de tantos terrores reais e modernos assustavam os homens e faziam as crianças rezarem e ficarem quietas para dormir?

Entre meditações, cochilos, sobressaltos e, por fim, sono profundo atravessei a noite. Na manhã seguinte despertei cheio de planos brilhantes para ajudar o lobisomem.

Paciente e submisso ele suportou cada procedimento, cada engano, cada sugestão minha e foi sendo remodelado gradativamente para adaptar-se ao mundo dos homens.

Tricotomia total, geral e irrestrita, extrações dentárias, plástica das orelhas etc.,etc.

Finalmente conseguiu-se desorrorizar a aparência do Lobisomem e dentro de um grosso macacão de brim, sapatos e luvas o liberei para que saísse pelas ruas e travasse contato com o povo.

Conseguimos ajeitar o mínimo indispensável de documentos, demos a ele um nome bem simples, bem simpático e o deixamos ir.
E lá se foi o João!

No fim do primeiro dia ele voltou e contou que não conseguira ser aceito nem em um grupo de vadios que se reunia em uma esquina. No segundo dia idem... No terceiro, no quarto, no quinto, tudo a mesma coisa!

Depois de quase um mês parece que as pessoas foram se acostumando com o seu jeitão e passaram a mexer com ele chamando-o de Corcunda de Notre Dame e, quando descobriram seu nome, imediatamente o apelidaram de João Garante; mas ele não se importou e até deu mostras de estar gostando. Muito forte, paciente, necessitado de amizade tudo isso foi fazendo com que os grupos de braçais o fossem acolhendo paulatinamente até que, finalmente, ele chegou em casa contando que havia conseguido emprego. Eu e mais um grupo de amigos empenhados na experiência, consideramos aquilo um enorme êxito e demos um hurra de puro entusiasmo.

E o Lobisomem com o nome de homem foi dormir muito contente.

Aceito no nosso mundo ele esteve sumido de nosso bairro um bocado de tempo. Tempo em que com força descomunal, dedicação, entusiasmo e esforço incansável enfrentou todo tipo de serviço disponível.

Em breve notou que do seu trabalho não advinha mais que mirrado sustento com sacrifício de quase totalidade de suas horas de vigília.

Entretanto pensou, com certeza estamos construindo uma sociedade tal que, após este período de sacrifícios, passaremos a gozar de tudo o que edificamos.

Com o tempo descobriu que o que lhe tocava era a penas aquele sustento.

Meditou muito... E ficou triste!

Meditou mais e teve raiva!

E tendo raiva gritou tentando despertar os homens com suas verdades!

Uns estranharam... Outros ouviram... Alguns apoiaram... Mas, ninguém tinha verdades para gritar e num marasmo homogêneo voltaram ao trabalho.

Como seu grito não teve repercussão, ninguém o incomodou e assim pôde continuar andando despercebido pelo nosso mundo. E observando... E meditando...

Viu guerras onde os homens despejavam o fogo que não se apaga sobre seus semelhantes e ao mesmo tempo pregavam a mansidão, abondade, a piedade.

Viu navios de refugiados perambulando pelos mares e a piedade cristã , budista, maometana etc, etc, não saber como acolhê-los.

Sentiu os nosso pavores, conviveu com nossas tristezas, partilhou de nossas alegrias, comeu em nossas mesas mais pobres e aspirou a fragrância das mais fartas, apiedou-se de nossa piedade, procurou vislumbrar os nossos horizontes e os notou obscuros.

E concluiu: _ O HOMEM É MUITO INFELIZ!

Talvez reste-lhe avançarpelo universo e em mundos novos tentar modelos novos de vida.
Sem poder contribuir para modificar nosso mundo, uma última vez nos procurou e mais sofrido do que na noite da chuva, fez um relato sucinto e nos comunicou que iria bstratificar-se e, em outra dimensão, continuaria sua vida, longe dos horrores desse mundo.

E, mudos de espanto, o vimos passar desta para outra dimensão,desaparecendo ali na nossa frente.


Anápolis, 25.11.79