Finalmente,
quando a barra do dia talvez estivesse prestes a se postar no mais longe do
horizonte; você chegou.
Um pequeno
ser envolto em curativos e ligado a equipos, sondas e um destacado tubo que
penetrava a boca e fazia você inflar e desinflar ao comando de um respirador
que emitia um som numa intermitência rítmica e sincronizada com os movimentos
de seu tórax.
Posta no
leito da UTI, trocado o respirador do transporte pelo nosso, você passou para
os nossos cuidados, para o nosso afeto, para nossas preocupações; para nossas
condutas feitas de protocolos, de raciocínios, de experiências, de rapidez
analítica, de tomar consciência quanto a tudo o que já fora feito, de
monitoramento, de auscultas possíveis limitadas pelos curativos, de pedidos de
exames laboratoriais, de visualizações
também limitadas pelos curativos.
Lidos os
relatórios que a acompanhavam, feitas as avaliações, acertado o respirador, as
bombas de infusão, as sondas, os gotejamentos e estabelecidas as drogas
necessárias, acertado o jejum para os indispensáveis procedimentos no centro
cirúrgico na manhã que se seguiria àquela madrugada; já se passara mais de hora
e meia; então sentimos que dava para relaxar psicologicamente e respirar.
Aí começamos
a ver você como a pequena criança linda e indefesa, cativante e encantadora,
mesmo estando ali sedada e tendo somente um rostinho pontilhado de queimaduras,
mesmo tendo uma sonda passada no nariz e um grosso tubo colocado na boca; ainda assim cativante e emanando aquele
encanto de criança que em você era presente e envolvente como um irresistível
clamor por solidariedade e socorro.
Dia seguinte,
já foi possível retirar aquele tubo da boca e seu rostinho ficar mais
recomposto para ser visualizado. Mais alguns dias e as lesões do rosto cederam
e com a melhora de algumas outras lesões da face e das orelhas; foi possível
descobrir toda a cabeça. Liberada a cabeça,
toda a face, livre da sedação inicial; você passou a se comunicar com seus
vivos olhos, seu comunicativo olhar,
seus murmúrio, com algumas palavras balbuciadas só para alguns de nós, seus gemidos pungentes, com sua inquietude
que nos angustiava e nos deixava também inquietos e nervosos.
Foram dias e
mais dias dessa convivência. Dias e mais
dias de uma intensa luta. De uma amorosa dedicação das Técnicas de Enfermagem,
do pessoal do laboratório, do corpo clínico multiprofissional competente e
dedicado, dos cirurgiões e toda a equipe do CC.
Dias e mais
dias de uma mãe angustiada, dedicada, sofrendo calada.
Foram muitos
dias, muitas noites, horas e horas em que você alternava períodos de melhoras e
pioras; em que você chorosa clamava por alguém que alisasse seus cabelos,
aliviasse os pruridos de suas imensas lesões, passando a mão sobre os
curativos, dando medicações ou, até convencendo você de que a medicação já fora
dada (quando não era hora) e que o efeito não tardaria a vir.
Também
preces, muitas preces fizemos pondo a mão sobre você e pedindo a Deus que nos
usasse para fazer o milagre tão necessário para você e para cada um de nós
envolvidos profissionalmente e afetivamente pela sua angelical capacidade de
capturar nossos sentimentos.
Há os que
creem em Deus por uma fé incrustada em suas almas, há os que não veem lógica
numa vida sem Deus e há os que, na extrema necessidade, invocam
desesperadamente a presença desse Deus que não precisa de minha fé e nem de meu
consentimento para que me use. Todas essas formas de crer e admitir Deus foram
usadas por nós ao seu lado, por você, à beira de seu pequeno leito.
Palavras,
cantigas, cantos, cânticos, histórias infantis onde menininhas assustadas
acabavam vencendo a gravidade da doença, o medo, a dor, o trauma e voltando
para sua cidade, seu bairro, sua casa e seu quintal cheio de encantos, de
pássaros, de pequenos animais e de seus amigos. Também isso nós demos a você na
tentativa de dar conforto, de melhorar seu íntimo.
A custo ajudamos
você a ir lentamente se livrando do grande trauma que foi o acidente, quase
doméstico, ocorrido em seu quintal quando queimavam lixo e crianças brincavam
ali por perto e os adultos acreditavam que o fogo, a simples presença do fogo,
seria suficiente para manter as crianças afastadas.
Não foi.
As crianças
em sua ingênua inocência, na intrepidez da inexperiência e da necessidade do
descobrir; se aproximaram e, então deu-se o inesperado, uma explosão causada por algum frasco de aerossol
que atirassem ou que já estivesse misturado ao lixo; emitiu uma imensa língua
de fogo que chamuscou alguma outra criança, mas envolveu perigosamente seu
tenro, desprotegido, delicado e inocente corpinho.
Além do
susto a dor, além da dor o pavor de uma situação que fugia ao controle dos
pais, da família, da medicina de sua cidade, dos médicos do grande hospital da
capital. Além de tudo, já aqui conosco, o despertar num ambiente estranho,
envolta em curativos e cercada de pessoas nunca antes vistas por você.
Além do
ambiente estranho, das dores, dos curativos; os calafrios das febres, o mal
estar vindo quase todos os dias após a cessação da ação das drogas usadas na
anestesia geral, o desconforto de evacuar no leito em fraldas, as assaduras, as
punçoes diárias para exames laboratoriais.
Ainda, o que tanto a incomodava, a sonda nasoenteral
passada em uma das narinas, perpassando a garganta, o estômago e indo até
porções iniciais do intestino delgado. A sonda fixada ali na face para evitar
que saísse ou que sua mãozinha envolta em ataduras do curativo, conseguisse
tirar.
Lentamente fomos
deixando de ser estranhos para você, lentamente o ambiente foi se tornando seu
ambiente, pouco a pouco fomos nos ligando a você até que não conseguimos mais
nos conter e passamos a gostar de você com um amor que não convém aos corações
quando uma incerteza tão grande está rondando. Quando o impossível está
presente e vai lentamente crescendo e se tornando maior que o possível. Maior
que nossas forças, que o poder das drogas terapêuticas, que a ação dos
aparelhos, maior que todas a capacidades ali reunidas, mais forte que nossas
preces e toda nossa dedicação.
Finalmente,
como aquele Pequeno Príncipe de Exupéry, você partiu para um mundo encantado de
Deus, onde talvez não haja saudades, nem sustos, nem dores, nem sofrimentos.
Onde reinações de crianças nunca se tornem tragédias.
Nós, aqui
ficamos em nossa perplexidade, amargando a perda e pesarosos. Refletindo,
decepcionados, na incapacidade humana de lidar com coisas tão complexas como a
vida.
Rilmar - 01/02/2019