terça-feira, 29 de outubro de 2019

MOMENTOS


Momentos - 05/9/19
Naquela tarde eu cantava alguma canção quase folclórica e, pelo costume antigo, não percebia que algumas palavras estavam totalmente erradas. Você me corrigia e eu teimava em discutir e garantir que o certo era eu.
Ainda não vivíamos os tempos de Google, esperei até encontrar em algum lugar a letra da música e você estava certa. Me desculpei, mas você fingiu zanga e não aceitou. Declarei o meu erro e disse que você estava certa. Você sorria com um rosto alegre, juvenil, lindo e um sorriso branco e adorável.
Insisti para que me perdoasse.
Nada!
Aproximou-se de mim, afagou-me o cabelo com mãos suaves e gesto cheio de amor.
- Você é muito cheio de si.
Disse.
- Não vou perdoar e pronto.
Comprimiu meu rosto contra você e continuou rindo e não perdoando.
Ah!... Como a amei intensamente naquele momento.
Meu Deus, como você estava linda! Espontânea, jovial, cheia daquela alegria que era só sua, que só existia em você; na sua presença, na expressão de seu rosto e em seu sorriso encantador.
A casa tão singela, tão humilde, com paredes rebocadas e sem pintura, o chão de cimento grosso, janelas frágeis, mas um lar que nos acolhia e que era iluminado pelo nosso momento, pela sua alegria irradiante, esfuziante. Pelo nosso modo de declarar nosso amor a todo instante e em cada gesto.
Meu Deus! Como você está bela e tão cheia de vida nessas lembranças.
Não precisa perdoar, basta me amar daquele tanto e deixar que eu a ame do mesmo modo que nos amamos naquele momento e em todos os momentos que tivemos para nós.
O tempo moveu-se em si mesmo.
O tempo só se move no tempo.
Não existe éter, ar ou vácuo onde o tempo possa se mover. Muda, passa, vai-se, mas sempre em si mesmo. O momento passou. Depois daquele, outros momentos vieram, duraram um certo tempo e desfizeram-se como soe sempre acontecer.
Passado o tempo, o presente, a gente lembra e tem saudade, mas urge ingressar em e viver novos momentos que já começam logo a acontecer. E os novos momentos vêm com sua própria capacidade de nos envolver com emoções, com sentimentos, sons, presenças; com vida enfim.
Veio a hora do jantar. Éramos só nos dois. As panelas tão pequenas, tão fumegantes, cheirosas, limpinhas, bem cuidadas. Nessa, arroz soltinho, na outra um picadinho verde, verdinho de chuchu; naquela o feijão marrom e apetitoso com cheiro de gordura de porco; outra panelinha com carne picadinha enfeitada com cebolinha e salsa, muito verdinhas.
De pé, à beira do fogão, você com um sorriso esboçado esperando eu dizer que tudo estava maravilhoso.
E estava.
E eu dizia que sim.
Como você está tão bela e alegrezinha nessa lembrança. Como você estava irresistível naquele momento. Como amei você no seu modo de me olhar enquanto destampava as panelas me exibindo o que fizera para nós.
Feitos os pratos, compostos como se obedecessem a algum protocolo: feijão no canto com uma nuvenzinha de farinha como cobertura, arroz bem branquinho completando a primeira camada da superfície redonda do prato depois, por cima, a carne e a porção de verdura. Uma fumacinha clara e leve desprendia trazendo um cheiro que era mistura dos cheiros de cada componente apetitoso do prato. Irresistível cheiro.
O melhor, o mais terno, o mais importante era sua presença ali na minha frente com seu rosto formoso e alegre irradiando ternura tanta.
Depois eu ajudei você a tirar a mesa, dois pratos, garfos, duas facas, vasilha de farinha, um vidro pequeno de pimenta de cheiro e, então, arrumar a cozinha.
Ouvimos músicas no rádio. Conversamos. Fizemos planos para o fim de semana. Concordamos que a fase era de luta, de construção do futuro; que o dia seguinte viria e eu teria que sair quase de madrugada para a faculdade e depois para o trabalho e que só estaríamos juntos novamente após um dia e meio. Mas era tão bom o nosso viver, nosso lutar, nossa busca. Amei você imensamente naquele momento, companheira de minha vida.
A amei na noite que foi curta demais para o tanto que era bom estar com você, amar, amar e amar. Ouvir sua respiração tão suave, tão doce e sutil. Presenciar seu sono e sentir a noite calma e agradável devido a sua presença mágica, encantadora, terna; cálida, cheia de paz e ternura. Em certos momentos eu tentava mudar minha posição na cama, com cuidados para não perturbar seu sono, mas você movia suavemente a cabeça voltando os olhos para mim, mesmo fechados, como se me vigiasse. Deixava escapar um leve, um quase silencioso murmúrio como se queixasse, entreabria para isso dois lábios róseos, delicados e tão perfeitos que eu passava longos momentos perdido e os apreciando dentro da noite. Por fim o sono vinha como um manto e nos envolvia juntos nos mesmos sonhos, no mesmo sono, na mesma nuvem de sentimentos.
Ainda na madrugada, antes do início do dia, eu partia em busca do presente e do futuro. Você se despedia da janela. Tão linda, tão jovem, tão sublimemente encantadora. Ficava só numa casa quase vazia, mas sorria abanando a mão. Em uma solidão voluntária, inventando coisas para fazer e a minha espera. Deus nos ouviu e nos deu um ao outro bastaria isto para uma vida valer a pena. Mas depois Deus nos deu mais e mais.

Uma Rosa ao Pé do Muro

Uma Rosa ao pé do Muro

Isso foi há muito tempo.
Era de manhã. Eu passava por um quintal cercado de muros
. Bem ao pé de um dos muros vicejava uma pequena roseira.
Mais definhava que vicejava. Mas tinha algumas folhas verdes e emitia brotos ansiosos pela vida.
Bem no meio daqueles ramos, erguendo-se mais que eles como que para se mostrar; uma rosa vermelha com tons escuros permeando o colorido. Uma Príncipe Negro, talvez.
Gotas de orvalho aqui e ali, nas pétalas aveludadas que além de nos cativar pela singela beleza ainda emanavam um perfume tão sutil e agradável que nos levava e nos curvar e aproximar a face da flor para melhor sentir o aroma.
Era eu ainda criança. Sabia pouco da vida. Sentia mais que sabia.
Ao aproximar meus olhos daquela flor, percebi espinhos no galho que a sustentava. Vi também formigas indo e vindo rápidas numa faina insana de ordenhar uns poucos pulgões que habitavam o cálice onde a flor se aninhava.
Meu amor pela flor foi imediato.
Não, guardá-la para mim; não, de arrancá-la de seu galho onde vicejava e encantava as gentes. Mas de protegê-la, de cortejá-la longamente, de revê-la muitas vezes, de saber que ela ali estaria radiante e bela para que todos a vissem e revissem. Para que seguisse perfumando o ar e encantando os olhos.
O velho muro atrás da roseira, roseira de uma única rosa, era branco amarelado e manchado de espaço em espaço, de grandes máculas irregulares e escuras semelhantes a nuvens. Na sua inserção na terra havia também aqui e acolá, nichos de musgos de um verde sombrio.
A criança, a rosa, o espinho, as formigas indo e vindo, os pulgões e os musgos.
Se alguém se detivesse para uma fotografia, ou capturasse aquela cena para um quadro, por certo guardaria uma imagem capaz de encantar plateias.
Ninguém se deteve.
 Só a criança.
Eu.
  Depois de algum tempo acomodei-me sentado em uma pedra que encontrei por perto e me detive alheio ao mundo e namorando a flor.
Quis eliminar alguns espinhos que achei não combinarem muito com  ela, também quis esmagar as formigas que parasitavam os parasitas da flor. Algum clamor da natureza me aconselhou a me deter pois também eu ali estava usufruindo o perfume, a beleza e a interação entre a terra, o sol, a magia de Deus e os seres  que em seu conjunto compunham a vida.
Deixei-me ficar ali por algum tempo distraído.
Quando já me levantava para ir embora, ainda veio um casal de borboletas voejando, se tocando e, vez por outra beijando a rosa. Duas borboletas amarelo ouro, refletindo luz, rebrilhando no bater das asas sob a luz do sol.
Pensativo, encantado me afastei em direção à minha casa. Saíra para comprar alguma coisa e já não me lembrava mais o que era.
Naquele mesmo dia, já à tardinha, ainda voltei com uma latinha de água e reguei a planta, e revi a rosa que estava mais bonita ainda e, parece que me aguardava.
Detive-me por uns momentos embevecido diante dela. Cheguei a dizer alguma coisa, mas ela se manteve muda, apenas exalando perfume e exibindo sua beleza. Se houve alguma resposta foi quando um derradeiro raio de sol pousando sobre suas pétalas a iluminou e, como num palco mágico, exuberou  ainda mais seu encanto e beleza e impregnou-me ainda mais de sentimentos ao pensar que ela se exibia para mim. 
Como a penumbra do fim de dia já envolvesse tudo, tive que deixá-la e voltar ao lar.
À noite adveio uma tempestade de chuva grossa, relâmpagos imensos e ruidoso vento.
Felizmente eu dormia aconchegado à minha mãe e protegido.
Na manhã seguinte, preocupado, voltei lá. A pedra, o muro, a roseira lá estavam, porém, a minha rosa tinha ido embora. O mais certo é que tenha sido a tempestade, porém pode ser que algum enamorado a tenha colhido e presenteado uma musa e que então a flor estaria perfumando uma casa e enfeitando uma mesa, repousando em um algum vaso e deixando cair uma a uma, suas pétalas coloridas.
Talvez cumprisse apenas seu destino de rosa. Não serem eternas. Pouco mais que efêmeras é o que são.
Só restava ali, um caule vazio e a roseira tristonha com alguns brotos ainda mais viçosos e em busca de vida e com esta, com certeza nova rosa, mas nunca mais aquela que chamei de minha.
                                                                   Rilmar - 19/5/2019

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Dona Magnólia Virou Santa

                  DONA MAGNÓLIA VIROU SANTA
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Bebia umas pingas de vez em quando, ia pouco à igreja, rezava a todo instante. Era temente a Deus, boa e caridosa. Resignada com a vida, com o trabalho, com a criação dos três filhos, sem ter marido e morando numa casinha que parecia um forninho de assar biscoitos no fundo do quintal. Era um local meio sem dono numa área próxima ao chamado Corte dos Urubus, que era um corte no morro onde ela morava, feito para a passagem do trem-de-ferro.
Nem água encanada, nem esgoto, nem energia elétrica.
 Dentro da casa não tinha quase nada a não ser os catres, arremedos de camas com capins ensacados servindo de colchão. O fogão era um amontoado de pedras rejuntadas com barro de cerâmica cavoucado ali por perto. Lenha eram paus tortuosos buscados no cerrado ou furtados na beira da estrada de ferro.
Rezava muito, pedia a Deus e agradecia à toda hora ao que Deus fazia por ela, pelos seus e pelas pessoas de quem ela gostava. Estar viva, não ser atacada por malfeitores nem por inimigos anônimos, não ver fantasmas, ser guardada contra as maldades do capeta, adoecer pouco, ter seus filhos vivos e sem doenças aparentes. Acho que é por essas coisas que ela tanto agradecia.
Dona Magnólia xingava nomes feios de vez em quando, falava a palavra desgraça e chamava o capeta por apelidos como romãozinho, temerosa de pronunciar o nome verdadeiro do coisa ruim.
Trabalhadeira como ninguém. Lavava roupa de ganho. Lavadeira.  Nunca brigava com a patroa, nem mesmo quando traziam umas roupas sujas já no final da lavação, quando a mala já estava quase acabando. Mascava fumo, falava sozinha, e tinha poucos dentes. Cuspinhava de vez em quando jogando o cuspe amarronzado da mascação de fumo longe e de banda.
Não sei como é que conseguia trabalhar daquele tanto tendo braços tão finos. Seus braços eram fininhos desde aqui em cima, descendo pelo antebraço e incluindo as mãos e cada dedo. Os cotovelos de tão desprovidos permitiam a visualização anatômica perfeita dos encaixes. Seus cabelos, meio encarapinhados eram ralos e curtos. Sempre penteadinhos e no mais das vezes cobertos com um lenço improvisado com um retalho de algum lençol velho. A cabeça também era pequena e o pescoço fino, fino. O corpo era mirradinho e se continuava por pernas e coxas exíguas; fininhas. Os pés miudinhos, de aparência frágil, tinham solas ásperas sofridas e com algumas trincaduras nos calcanhares. Só a leveza de seu corpo poderia explicar o porquê daquelas pernas e pés serem capazes de sustentar e carregar aquele ser de casa para o serviço, zanzar na beirada do tanque o dia inteiro e ir incontáveis vezes do tanque para o quintal onde estendia as roupas nos arames, sempre em solilóquio, murmurando alguma prece ou remoendo lembranças. Almoçava junto conosco e comia o que nós comêssemos além de dar um prato para a filha que não desgrudava dela e era também muito magrinha e mirrada.
No fim do dia, saía levando o ganho do dia e alguma coisa de presente que minha mãe lhe dava, qualquer coisa,  geralmente comida, e as mesmas pernas mirradas e fininhas passavam com ela num boteco bem no final da rua onde ela tomava lá uma boa pinga, talvez comprasse um pedaço de fumo para a mascação; a companhia de suas mágoas;  para um outro jeito de ver o mundo; o consolo pelo companheiro que não tinha. Acho que tudo estava ali naquele gole de pinga e no naco de fumo que levava para aliviar as dores de dentes, desinfectar a boca e propiciar um sono bom na miséria do abrigo onde se aninhava durante a noite.
Não ia tanto à igreja, mas comparecia nas casas onde rezassem o terço, festejassem dias santos e aceitassem de bom grado sua presença. Também acompanhava alguma procissão, cantando ladainhas misturada com outros cristãos. Nas tempestades gritava por santos consagrados para as ocasiões e inteirava invocando outros santos de sua devoção.
Sua religiosidade era inquestionável.
Demonstrava sempre muita fé. 
Pecados, talvez não os tivesse e, se aqui ou ali cometesse um ou outro pequeno deslize; certamente os purgava logo em seguida devido à vida de sacrifícios e resignações que levava.
Era boa, humilde e trabalhadeira. Todo mundo gostava dela.
Muitas e muitas vezes vi seu vulto se afastando na boca da noite indo embora para sua casa. Tantas e tantas vezes a vi chegando com seu vestidinho puído, ralo, caído sobre o corpinho miúdo e magro, sempre mascando um pedacinho de fumo e exibindo a exiguidade de seus dentes. Os da frente eram apenas um canino e um incisivo, mais para o lado direito. O pedaço de fumo disfarçava as outras falhas. Sua presença era benfazeja e esperada. Tomava um café com alguma quitanda, de pé no meio da cozinha e já ia caminhando em direção ao tanque de roupas.
Acho que o dia dela vir era sempre nas quartas-feiras. Chegava de manhã e ficava até quase o fim do dia. Já era um costume dela e nosso.
Um dia ela não veio...
Não apareceu por muitos dias. Até que nós, crianças percebemos e perguntamos uns aos outros primeiro e, depois perguntamos aos adultos.
Dona magnólia morreu!
Mas como, se ela nem estava doente.
Tão magrinha, tão mirradinha, comendo pouco, mascando fumo, tomando uma pinga no fim do dia, dormindo mal acomodada e cercada de barbeiros; sempre cantarolando, falando sozinha, deixando às vezes, escapar uma lágrima no canto do olho. Mesmo assim, ao nosso ver de crianças, sadia, sã, forte.
Na nossa cabeça de meninos as pessoas são de um certo jeito e pronto. Dona Magnólia era daquele jeito mesmo.
Não era...
 Era doente e sofrida. Tinha uma natureza de ferro e por isso passava a impressão de que era daquele jeito mesmo e que assim iria viver anos e anos como todo mundo.
Não viveu...
Morreu dormindo, do jeitinho que se deitou morreu. Talvez nem tenha sofrido. Deve ter feito suas preces, conversado com Deus e, dormindo, no correr da noite morreu.
Dona Magnólia era sem dúvida uma alma santa.
Deve ter ido para o céu.
Achamos que ela foi direto para Deus.
Os adultos, a cidade, a igreja, as autoridades; ninguém percebia sua santidade, a não ser as crianças que admiravam aquela criatura tão sem queixa, ser tão mirradinha e estar sempre ali trabalhando e cantarolando como se estivesse continuamente feliz.
 Não pensamos em bispos nem papa, nem nas freiras, nem no padre. Resolvemos canonizá-la, nós mesmos; os meninos e meninas.
 Ninguém nos daria ouvidos.
 A beatitude varia muito conforme as pessoas que se reúnem para atribuí-la a alguém.
Mais santa, mais crente, mais resignada, mais sofrida e conformada do que ela, a agente nunca viu ninguém. Mais extremosas com a filha que estava sempre grudada nela e para a qual ela tirava da boca para alimentar, nunca tínhamos visto.
E o tanto que ela acarinhava e beijava aquela filhinha várias vezes no dia e carregava no colo com as forças dos braços franzinos e das pernas tão fininhas.
A maneira como foi criada, no serviço, analfabeta, ciente de seu lugar no mundo, comendo o pouco que lhe dessem; talvez por isso os neurônios não fossem tantos ou tão capacitados. O fato é que só era capaz de ser simples e humilde. Nunca lhe ocorreram projetos maiores ou mais abrangentes.
Ninguém haveria de ter tanta paciência quanto ela que nos tolerava sem levantar sequer a voz para pedir que controlássemos nossas diabruras ali por perto do tanque, enquanto ela lavava a trouxona imensa de roupas imundas da molecada.
Dona Magnólia vai ser santa. Se não for de todas as pessoas, será, ao menos nossa santa.
Improvisamos um altarzinho no canto do muro, acendemos duas ou três velas, tomamos um rosário emprestado dos guardados de minha mãe; também uma velha Bíblia que ficava sempre numa gaveta reservada lá no quarto de meus pais, nós pegamos por empréstimo.
Alguém mais letrado, delineou o culto, fez uma lista de frases e orações que deveriam ser pronunciadas lentamente e com muita fé. O culto incluía, além das rezas, sacrifícios de se ajoelhar no chão bruto, permanecer ajoelhados um certo tempo, contritos, de braços cruzados, sérios e com o pensamento voltado para Deus.
E íamos repetindo coisas já ouvidas nas novenas, nos terços, nas rezas de ofertórios a santos populares e depois rogávamos a Deus que santificasse Dona Magnólia. E dávamos nossos testemunhos do quanto ela era boa, e pura, e   temente a Deus, do quanto tinha sofrido durante a parte de sua vida que presenciamos. Ressaltamos o fato de ela não ter marido que a ajudasse no sustento e a protegesse. Pedimos perdão pelos seus pequenos vícios. Por fim derramamos sobre ela, que deveria estar ali em espírito, nosso amor e gratidão por tudo de bom que tinha feito para nós o tempo todo. 
Deus aceitou.
Nosso íntimo, nossos corações, nossa fé, nossas alminhas; em certo momento nos disseram isso.
Depois fomos lentamente contando para as pessoas que Dona Magnólia agora era uma santa.
Dias depois fizemos uma linda missa no quintal em louvor a Dona Magnólia. A presença de público foi fraca. Mas, nós, os canonizadores comparecemos e até conseguimos mais alguns adeptos. Pessoas simples, crédulas, necessitadas, desesperadas, nós e mais algumas crianças que acharam interessante aquilo que estávamos fazendo.
Aí, começaram os milagres.
 Testemunhos e mais testemunhos de que coisas maravilhosas haviam acontecido na vida de pessoas que estiveram na missa e até de dos que nem sabiam que tinha havida a missa, porém lá na missa alguém havia pedido por elas.
A beatificação começou a se espalhar pela cidade. Chegou na igreja...
Vieram as proibições, as reprimendas, as conversas com os pais. Tudo serviu para divulgar mais e mais o nosso ato.
A partir daí a beatificação se consolidou entre os humanos.
 Lá no céu, certamente havia até festa pela chegada de Dona Magnólia que em sua simplicidade deve optado por permanecer com a mesma aparência com a qual a conhecíamos: Nem bonita nem feia. Apenas ela, Dona Magnólia; agora Santa Magnólia. Mirradinha, franzina, magrinha de pernas e braços muito finos, boca desprovida, olhar doce e humilde, mas acrescida agora de um envoltório de luz e a auréola que ela sempre imaginou que os santos ostentavam sobre a cabeça.
Santa Magnólia, rogai por nós!... Não nos queira mal, somos apenas humanos.
Rilmar – 15/10/2019



quinta-feira, 18 de abril de 2019

Porque não me Tornei um Grande Desenhista

Porque não me Tornei um Grande Desenhista


(Rilmar)

Estava tão impregnado de sentimentos por uma menina, que não conseguia deixar de pensar na imagem dela, nos jeitos, nos modos, na graciosidade, no azul daqueles olhos, nos cabelos que balançavam tão leves, tão soltos, tão sedosos quando ela andava ou o vento neles batia.

Com a incrível facilidade que eu tinha para desenhar, para recriar imagens que estivessem habitando minha mente; para acrescentar encantos, beleza, magnetismo, modos de me olhar das meninas da minha meninice; sempre elas.

Às vezes acontecia de eu me apaixonar por alguma professora. Nesse último caso, o ensino era presencial e o secreto amor, à distância.

Com minha arte pululando nas veias; a beleza e o encanto das mulheres ocupando grandes áreas do meu pensamento; era inevitável que eu saísse desenhando rostos, bocas, cabelos, musas por inteiro. Nem sempre me limitava a desenhar nos meus cadernos, nas costas de folhas de exercícios escolares, no quadro negro, nas margens dos meus livros de estudo. Vez por outra eu vislumbrava um painel em um pedaço de parede branca qualquer, que estivesse ao meu dispor e me expressava artisticamente, com todo esmero, com toda a arte, com minha integral capacidade de transformar, em imagem concreta, toda a magia e sonho que estivessem habitando meu pensar, meu coração, meu envolvimento.
Então, pensando naquela menina, compus uma cena tão linda, tão nítida, tão rica daqueles elementos que só os sonhos proporcionam. 
   A menina era um rosto em que todas as expressões sorvidas por meus olhos, interpretadas e sentidas por minha mente e meu coração, enchiam-se de irresistível magia e, de qualquer ângulo que eu olhasse, lá estavam sempre voltadas para mim, mormente seu olhar cândido e expressivo.
    Não fosse eu tão capaz na arte de desenhar, não tivesse eu esse dom expresso de maneira tão precoce em mim; as coisas poderiam ter corrido de outra forma.
    Porém, aquela cândida criatura, olhando sempre para quem a olhasse, exposta ali naquele painel que me custou tanto escolher; naquele desenho em preto e branco que encantava a todos com os encantos que eram dela e que minha imaginação revelava com nítidos toques do sonhador. A ninguém deixaria de tocar.  O olhar cândido dos olhos azuis que mesmo em preto e branco eram adivinhados, os cabelos soltos, claros, leves e sedosos; o sorriso apenas esboçado revelando a expressão alegre e juvenil. A conformação do rosto, a inclinação leve para um lado, a gola do vestido e a pequena porção de tecido que vinha a seguir, estampada de minúsculas florzinhas em fundo branco.
Isso só. Nada mais.
Apenas isso já foi suficiente para que a mãe, ao ter notícia e ver, reconhecesse, protestasse com veemência e incitasse o pai a ter uma conversa com meu pai, e com o diretor da minha escola, e com o padre de minha igreja, e com minha mãe e com o farmacêutico que era uma espécie de autoridade, e com muitas outras pessoas importantes e intimidadoras.
Levei uma, duas, várias carraspanas. 
Tive que limpar traço a traço cuidadosamente a parede que me servira de painel; cada traço desfeito, à vista de um grupo de pessoas que murmuravam e davam conselhos e palpites o tempo todo, desfazia minha criatura idealizada e ia machucando, passo a passo, profundamente minha alma.
Passei uns dias tristinho e meio envergonhado como se tivesse praticado um ato muito reprovável expondo ao mundo minha interpretação artística daquela criaturinha inocente, meiga e tão bela.

Nunca mais consegui desenhar.

A criaturinha ainda permaneceu bela por uns tempos, depois esteve bonitinha; mais tarde vieram sardas, espinhas, expressão preocupada, uma ruga na testa e, por fim mudou-se para outra cidade onde casou-se, teve muitos filhos e, ao que sei, foi e segue sendo muito feliz.

Eu, dos dons que tive, pouco me resta. Vez por outra, depois de incontáveis sessões de terapia, consigo desenhar umas florezinhas de quatro pétalas desiguais ao redor de um miolinho que mais não é que um ‘O’ tortuoso respingado de cores irreais e sem vida.

    
Às vezes ainda ocorre um tremor de mão gerando pétalas de bordas bruxuleantes e tortuosas, e a florzinha é triste e murcha e fica ali deixada sobre a folha em branco. Como espelho de uma alma.

Quem perdeu foi o mundo que ao invés de um desenhista desocupado e sonhador; andando por aí e embelezando o mundo. Tem hoje esse ser normal e comum, cujos olhos lacrimejam ao contemplar certas pinturas, batalhando pela vida como tantos outros.
(05.6.2018)

sábado, 13 de abril de 2019

Uma Acolhedora Tribo


UMA ACOLHEDORA TRIBO

    Tornei-me hemofílico por capricho dos deuses!
Não herdei hemofilia de nenhum antecedente meu não. Aliás, devo esclarecer que nunca herdei nada de ninguém. O pouco que tenho foi batalhado, esperado, planejado, adquirido com muito suor e sacrifícios. São sobras do que produzi sofridamente, não consumi nem me tomaram de alguma forma.
    Sendo a hemofilia uma doença hereditária, e eu, como bem já afirmei, não a tendo herdado, como foi então que de repente, num friccionar da gengiva com um palito português de boa marca eu me descobri hemofílico?
   Bem só pode ser capricho dos deuses ou efeito de alguma poeirazinha rica em Urânio enriquecido que abriu as asas sobre mim.
 Ah!.... A liberdade de contaminarem o mundo.
   Tornei-me hemofílico num instante bom da vida... Palitava calmamente os meus então vigorosos dentes, numa atitude cheia de pachorra e deselegância. Lembro-me bem que no palitar havia uma sensação de prazer, ao aliviar a pressão que corpos estranhos exerciam metidos que estavam nos espaços entre os dentes e forçando o aumento desses exíguos espaços, liberando incômodas substâncias inflamatórias e desagradáveis odores na fermentação. Também causava prazer a fricção da gengiva nas junções desta com as polpas dentárias, vez que isto despertava uma coceirinha adormecida e uma pitadinha leve de dolorimento.
   Em dado instante percebi que sangrava. Sim e continuamente.
   Uma vez às voltas com uma hemorragia gengival que não parava, enchia-me a boca de sangue, descia goela abaixo, sufocava; fazia-me cuspir, babar, empapar o lenço, a gola da camisa e a camisa toda, até sobrar para o primeiro pano que eu encontrasse pela frente. Uma vez às voltas com tal drama e adivinhando a proximidade de um quadro de extrema gravidade e até mesmo da morte. Saí correndo à procura de um Pronto Socorro. No Pronto Socorro prontamente me disseram que eu seria levado a um Banco de Sangue que ficava nos fundos do hospital e que tinha pessoal especializado e meios para me acudir.
Embarcado em uma ruidosa maca fui sendo levado às pressas pela calçadinha que contornava o hospital.
Ainda bem que eu não estava só.
Comigo seguiam uma parente distante, um enfermeiro me dizendo para ter calma, um eficiente maqueiro que dirigia, servia de motor nas subidas e de freio nas decidas mais íngremes do trajeto.
   De um modo ou de outro, aos trancos e barrancos, acabei chegando no tal Banco de Sangue onde limparam minha boca, comprimiram minha gengiva com gaze embebida em soro com adrenalina, deram uma geral na minha fachada com solução de água oxigenada,  providenciaram exames e transfusões de plasma, concentrado de fator VIII e, coroando o séquito de reposições, depois de balançar negativamente uma cara de desaprovação por meu sangue ser uma espécie de raridade chamada B Negativo, um técnico baixotezinho veio com um frasco de sangue total geladinho e, tuff,  acoplou na agulha que já estava no meu braço desde o primeiro plasma.
   Devidamente recuperado, na manhã seguinte, fui para casa tomar banho e remover uma lambança de sangue ressequido que eu tinha por tudo quanto é canto imaginável da superfície corpórea, principalmente, e para meu azar, nas partes mais peludas onde a remoção  muitas vezes tinha que ser feita, ora na marra, ora às custas de perdas de enormes mechas que era quando me via obrigado a apelar para tesouras, giletes ou aparelhos de barbear na eliminação de uns tufos formados por cabelos, soro seco, fibrinogênio e hemácias transformados em verdadeira argamassa.
   Haviam me dito que era hemofilia. Era a chamada A.
 Depois do banho vesti roupas limpas e frescas, fui até a janela arejar um pouco a cabeça e então me deitei e libertei de todo o pensamento deixando-o analisar por todos os ângulos a nova situação em que, da noite para o dia, me encontrava.
O resultado foi introjetar a nova situação e partir para um planejamento de vida.
   Não se casar, não procriar, não me ferir, não dar topada, não beijar ardentemente, não isso, não aquilo... não... não e nãos.
   Saquei rapidinho que seria difícil viver entre os humanos normais, fazendo as coisas que fazem, e impossível viver isolado, vez que os mesmos são ricos em fator VIII e eu doravante seria física, psíquica e religiosamente dependente dessa santa gosminha posteriormente liofilizada e transformada num caríssimo pozinho. A dependência já estava estabelecida antes de eu nascer.
   Foi aí que, através de um outro hemofílico conhecido meu, eu me aproximei, passo a passo e acabei por ser admitido na festiva e feliz tribo de uns hemofílicos.
   Fui recebido com naturalidade: sem euforia, sem iniciação, sem resistências.
   Várias características me deram a impressão de que costumes, usos e tradições seculares regiam aquele grupamento que por viver mais ou menos isolado, com seus usos e costumes próprios, pensei como tribo.
   O pó anti-hemofílico lá, a bem dizer, corria solto. E, de mamando a caducando todos tinham acesso. Haviam até bolado uma maneira menos incômoda de o ingerir. Ao invés de esperarem as crises hemorrágicas, os derrames articulares, os volumosos hematomas para se medicarem, não; usavam-no cronicamente, aspirando de uma a algumas pitadas diárias e isso os mantinham em excelentes condições de saúde.
   Porque havia alguns que não gostavam, ou negligenciavam o uso diário e sistemático do liofilizado; o Conselho da Saúde Preventiva, após acurados estudos, resolveu oferecer as pitadas aromatizadas e, para isso, desenvolveu variados aromas como: cheiro de  rapé para os que vinham de zonas de cultivo de tabaco; aroma chiclete japonês para a criançada; aroma viagem profunda para alguns viciados em outros pós; aroma pó de arroz para os almofadinhas; aroma me chama que eu vou; aroma tradição família e propriedade; aroma selva espessa; desmatamento; mato queimado; arroz com feijão; espuma de chopp; e, para os mais resistente, a pitada absolutamente irresistível: aroma fêmea no cio.
   De forma que picada de agulha ali, era uma raridade. Hemorragias, pouquíssimas.  Abstinências, cuidados excessivos, proibições de mil coisas, tudo era posto de lado ou observado tão sutil e moderadamente que se tornava imperceptível.
   A comunidade em outros tempos, viveu agudos apertos mas, na minha época já atingira quase a autossuficiência;  plantando suas próprias roças: criando gado para o consumo interno e desenvolvendo a produção liofilizada em sua própria indústria, dos pós anti-hemofílicos com a vantagens da aromatização e exportando outros hemoderivados em troca de doações de sangue de humanos normais.
   Ah! Tempos bons aqueles em que ali vivi, longe dessa balbúrdia da normalidade.
    O namoro, considerado salutar, necessário, indispensável; era incentivado, mas o casamento não. Misturar hemofilias, gestar, parir, cortar umbigos eram fatores de risco sempre lembrados apesar das pitadas inaladas como costume. De forma que o amor platônico era apregoado como alimento da alma, inspirador, inebriante, edificante. Porém o namoro mais chegado, o muito chegado também podia e, se mesmo com a desaprovação das famílias, dos amigos, dos conselheiros; dois seres resolvessem se casar, o casamento era permitido com a orientação de que os filhos poderiam vir com o problema e até não sobreviverem conforme ocorresse a combinação genética. Vez por outra surgia um namoro de alguém do grupo com alguém de fora, não era visto como problema, era até uma possibilidade de solução para a perpetuação da comunidade. As gestantes eram sempre acolhidas com alegria e com todos os cuidados e os conceptos admitidos com amor e festas.
Era um tremendo de um grupo festeiro, criativo, irmão. Uma tribo, melhor dizendo.
Aprendi a rezar suas rezas;
Cantar seus cantos;
Ouvir e contar histórias;
Comer sem pressa;
Amar e ser amado, amar sem ser amado, ser amado sem amar, mas doando-se assim mesmo.  – Usos e costumes lá deles.
Não se rezava sem se ir, com a prece, galgando estados mentais sucessivos em direção ao Incriado, até atingir a ilusão plena de que, abrindo os olhos o veríamos ali na nossa frente.
   Não se cantava sem sentir cada vez uma emoção diferente;
   As histórias eram sorvidas, minuciosamente sentidas, oniricamente vividas;
   Amor era para ser dado, haurido, exercitado.
 Aí, num outro momento bom de minha vida, quando eu tinha três belíssimas namoradas:
   Uma que me amava e me ensinava a doar;
   Uma que eu amava e me ensinava a sofrer;
   Uma que me correspondia e era minha paz.
   Contei e ouvi uma história;
    Cantei baixinho e tristemente uma melodia milenar;
   Comi devagarinho uma porção de paçoca;
   Olhei o povo nas praças;
   Vaguei pelas ruas do lugarejo e revi minhas namoradas;
   Ajoelhei-me num edredom espesso, em um templo vazio, reclinei-me e parti em busca de Deus.
   Embriagado de tanto enlevo em que me encontrava, percebi uma envolvência nítida e longa que atuava em mim e, então, me senti curado.
   Certo de que me tornara normal e, assim sem o elo fundamental com a tribo, ainda me submeti a testes para certificar-me totalmente disso. Inútil, os testes comprovaram minha normalidade. Para despedir participei de uma última reunião onde aspiravam o liofilizado pozinho e recebi como derradeira homenagem um lançamento: a pitadinha com aroma Coca-Cola.
   Joguei o casaco no ombro, experimentei as botas para ver se estavam confortáveis nos pés, acenei uma despedida e ganhei a estrada para a longa caminhada de volta ao mundo do cotidiano.          1990  -   Rilmar


Uma Acolhedora

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Ângela Luz

Era noite. Madrugada escura, madrugada cheia de cansaço como soem ser as madrugadas nos plantões; de apreensões porque nós a esperávamos. O cansaço e as apreensões fazem parte de nossas noites no hospital quando estamos à espera de alguém que está vindo e sabemos que é um caso grave. Grave a ponto de um grande hospital estar encaminhando para nós. Grave e sofrendo. Sofrendo e grave a ponto de temermos que o desafio esteja no limite de nossas capacidades.

Finalmente, quando a barra do dia talvez estivesse prestes a se postar no mais longe do horizonte; você chegou.
Um pequeno ser envolto em curativos e ligado a equipos, sondas e um destacado tubo que penetrava a boca e fazia você inflar e desinflar ao comando de um respirador que emitia um som numa intermitência rítmica e sincronizada com os movimentos de seu tórax.
Posta no leito da UTI, trocado o respirador do transporte pelo nosso, você passou para os nossos cuidados, para o nosso afeto, para nossas preocupações; para nossas condutas feitas de protocolos, de raciocínios, de experiências, de rapidez analítica, de tomar consciência quanto a tudo o que já fora feito, de monitoramento, de auscultas possíveis limitadas pelos curativos, de pedidos de exames laboratoriais, de visualizações  também limitadas pelos curativos.
Lidos os relatórios que a acompanhavam, feitas as avaliações, acertado o respirador, as bombas de infusão, as sondas, os gotejamentos e estabelecidas as drogas necessárias, acertado o jejum para os indispensáveis procedimentos no centro cirúrgico na manhã que se seguiria àquela madrugada; já se passara mais de hora e meia; então sentimos que dava para relaxar psicologicamente e respirar.
Aí começamos a ver você como a pequena criança linda e indefesa, cativante e encantadora, mesmo estando ali sedada e tendo somente um rostinho pontilhado de queimaduras, mesmo tendo uma sonda passada no nariz e um grosso tubo colocado na boca;  ainda assim cativante e emanando aquele encanto de criança que em você era presente e envolvente como um irresistível clamor por solidariedade e socorro.
Dia seguinte, já foi possível retirar aquele tubo da boca e seu rostinho ficar mais recomposto para ser visualizado. Mais alguns dias e as lesões do rosto cederam e com a melhora de algumas outras lesões da face e das orelhas; foi possível descobrir toda a cabeça.  Liberada a cabeça, toda a face, livre da sedação inicial; você passou a se comunicar com seus vivos olhos,  seu comunicativo olhar, seus murmúrio, com algumas palavras balbuciadas só para alguns de nós,  seus gemidos pungentes, com sua inquietude que nos angustiava e nos deixava também inquietos e nervosos.
Foram dias e mais dias dessa convivência.  Dias e mais dias de uma intensa luta. De uma amorosa dedicação das Técnicas de Enfermagem, do pessoal do laboratório, do corpo clínico multiprofissional competente e dedicado, dos cirurgiões e toda a equipe do CC.
Dias e mais dias de uma mãe angustiada, dedicada, sofrendo calada.
Foram muitos dias, muitas noites, horas e horas em  que você alternava períodos de melhoras e pioras; em que você chorosa clamava por alguém que alisasse seus cabelos, aliviasse os pruridos de suas imensas lesões, passando a mão sobre os curativos, dando medicações ou, até convencendo você de que a medicação já fora dada (quando não era hora) e que o efeito não tardaria a vir.
Também preces, muitas preces fizemos pondo a mão sobre você e pedindo a Deus que nos usasse para fazer o milagre tão necessário para você e para cada um de nós envolvidos profissionalmente e afetivamente pela sua angelical capacidade de capturar nossos sentimentos.
Há os que creem em Deus por uma fé incrustada em suas almas, há os que não veem lógica numa vida sem Deus e há os que, na extrema necessidade, invocam desesperadamente a presença desse Deus que não precisa de minha fé e nem de meu consentimento para que me use. Todas essas formas de crer e admitir Deus foram usadas por nós ao seu lado, por você, à beira de seu pequeno leito.
Palavras, cantigas, cantos, cânticos, histórias infantis onde menininhas assustadas acabavam vencendo a gravidade da doença, o medo, a dor, o trauma e voltando para sua cidade, seu bairro, sua casa e seu quintal cheio de encantos, de pássaros, de pequenos animais e de seus amigos. Também isso nós demos a você na tentativa de dar conforto, de melhorar seu íntimo.
A custo ajudamos você a ir lentamente se livrando do grande trauma que foi o acidente, quase doméstico, ocorrido em seu quintal quando queimavam lixo e crianças brincavam ali por perto e os adultos acreditavam que o fogo, a simples presença do fogo, seria suficiente para manter as crianças afastadas.
Não foi.
As crianças em sua ingênua inocência, na intrepidez da inexperiência e da necessidade do descobrir; se aproximaram e, então deu-se o inesperado, uma explosão causada por algum frasco de aerossol que atirassem ou que já estivesse misturado ao lixo; emitiu uma imensa língua de fogo que chamuscou alguma outra criança, mas envolveu perigosamente seu tenro, desprotegido, delicado e inocente corpinho.
Além do susto a dor, além da dor o pavor de uma situação que fugia ao controle dos pais, da família, da medicina de sua cidade, dos médicos do grande hospital da capital. Além de tudo, já aqui conosco, o despertar num ambiente estranho, envolta em curativos e cercada de pessoas nunca antes vistas por você.
Além do ambiente estranho, das dores, dos curativos; os calafrios das febres, o mal estar vindo quase todos os dias após a cessação da ação das drogas usadas na anestesia geral, o desconforto de evacuar no leito em fraldas, as assaduras, as punçoes diárias para exames laboratoriais.
 Ainda, o que tanto a incomodava, a sonda nasoenteral passada em uma das narinas, perpassando a garganta, o estômago e indo até porções iniciais do intestino delgado. A sonda fixada ali na face para evitar que saísse ou que sua mãozinha envolta em ataduras do curativo, conseguisse tirar.
Lentamente fomos deixando de ser estranhos para você, lentamente o ambiente foi se tornando seu ambiente, pouco a pouco fomos nos ligando a você até que não conseguimos mais nos conter e passamos a gostar de você com um amor que não convém aos corações quando uma incerteza tão grande está rondando. Quando o impossível está presente e vai lentamente crescendo e se tornando maior que o possível. Maior que nossas forças, que o poder das drogas terapêuticas, que a ação dos aparelhos, maior que todas a capacidades ali reunidas, mais forte que nossas preces e toda nossa dedicação.
Finalmente, como aquele Pequeno Príncipe de Exupéry, você partiu para um mundo encantado de Deus, onde talvez não haja saudades, nem sustos, nem dores, nem sofrimentos. Onde reinações de crianças nunca se tornem tragédias.
Nós, aqui ficamos em nossa perplexidade, amargando a perda e pesarosos. Refletindo, decepcionados, na incapacidade humana de lidar com coisas tão complexas como a vida.
Rilmar   - 01/02/2019