terça-feira, 27 de outubro de 2020

A Rima e o Tempo

 

A Rima e o Tempo

 

 

 

 

 

Fiz uma rima num dia

Em que a chuva caía.

Ela sorrindo, não me via,

Brincava e rodava, enquanto chovia.


Voltei a rimar, rimar num momento

Em que tudo era azul, azul o evento;

Ela brincava, levada no vento,

sorrindo e me amando; no meu pensamento.

 

Ainda rimei, na ébria esperança,

Ao vê-la crescer, não ser mais criança,

Sorrindo e brincando numa alegre dança;

Tornando-se outra, ficou só lembrança.

 

A chuva, o vento, de novo tocaram,

Nas pétalas sem viço da luz dos meus olhos

E as pétalas saíram brincando na chuva,

Bailando no vento.


Hoje, tento inutilmente rimar:

Chuva, vento, tristeza e lembranças.

Rilmar - 17.3.89

Um Médico no Inferno

                       Um Médico no INFERNO

Nunca entendeu por que é que foi parar no inferno.

   Tinha qualquer coisa de Macunaima dentro de si

 

Pecou muito: luxúria e sagacidade, sempre malandro, esperto, desregrado.

Honesto com tudo, menos com horários. Tinha compromissos de escravo, ambição de usurário e pensamento de liberal. Por isso mesmo tinha tantos empregos quantos lhe oferecessem, economizava o tempo encurtando horários e intensificando a pressa no atendimento; o pensamento liberal o fazia julgar que dava sempre mais do que recebia.

Sem ter dó de ninguém, não chegava a ser mau.

Bem intencionado.

Se percebia normal.

De boas intenções o inferno está cheio.            

Por isso ou por aquilo, mal acabou de morrer e já estava chegando no inferno.

Médico que era, foi prontamente aproveitado.

                                          ------- X -------

Os pacientes entravam numa longa fila de intermináveis orientações e triagens.

Orientações ao cinco primeiros:  Jejum por três dias e volta ao serviço para curativos.

- É com anestesia, Doutor?

- Não se preocupe, é surpresa.... Você vai adorar sair do jejum.

Outros cinco: Centro Cirúrgico agora para procedimentos e limpeza em lesões profundas.

Mas, Doutor!... Não estamos em jejum...

- Estamos com um método novo. As escovas de aço, o macrótomo semi-rombo e a cama imobilizante do Doutor Broiler, além dos curarizantes e das paredes com tratamento anti ruídos.    

Dispensam anestesia.

Os seis últimos: - (por coincidência os que estavam piores) - Direto para a UTI!...

Vão ser super cuidados. Ah! Se vão.

Na UTI os pacientes sofriam muito, mas não morria ninguém.

Todo mundo já tinha morrido uma vez.

Os médicos trabalhavam para morrer, mas ninguém morria.

O médico puncionava uma subclávia, passava fio guia, dilatador, cateter; aí descobria que não tinha bomba de infusão, que o soro não estava com o equipo, que a Técnica de Enfermagem foi ao banheiro.

 Meia hora depois, depois de uma espera dos diabos, de uma luta infernal... bem, a veia estava puncionada, o cateter fixado, o soro estava pingando, mas o paciente se extubou.

- Pelo amor de Deus, sedem o paciente!  Berrou o médico.

Ao pronunciar o nome de Deus, foi repreendido e avisado do que na próxima vez iria trocar de lugar com o paciente.

O doutor amarelou, suou frio, tremeu e se desculpou morrendo de medo.

 Às vezes se apavorava, se chateava, perdia a paciência; quando no meio da noite um paciente se extubava e havia ainda mais um dúzia de pacientes intubados, puncionados, com sondas obstruídas, agitados e querendo arrancar tudo que é tubo, só para torrar o saco da equipe.

No inferno não tem moleza.

No entanto, lá acontecem, pelo menos algumas vantagens que beneficiam  a equipe:  Ninguém morre; todo mundo está ali para sofrer; ninguém dorme; todo mundo sai de coma com uns bons beliscões (estímulos dolorosos).

Troca de medicamentos é comum e sempre com muita confusão.

Uma hora sem conseguir enfiar um tudo na traquéia: Normal, o paciente aguenta.

O monitor pisca, apaga, acende, dispara alarme, pula na mesinha; por qualquer coisa, emburra e não exibe parâmetros essenciais como SPO2, PAM, traçado de ECG.

O respirador enguiça, dispara, faz ruídos estranhos emite mensagens nem sempre compreensíveis e, de vez em quando, funciona um pouquinho, só para manter vivo o sofredor.

As bombas de infusão criam um caso atrás do outro e sempre disparando alarmes. Soros sobem pelas mangueirinhas e enchem os frascos. Sangue para de pingar. Plasmas congelam nos frascos; albuminas espumam dentro dos frasquinhos e   teimam em não correr.

Pacientes esquentam e tremem de febre com reações pirogênicas pelo sangue ou plasma recebidos.

Os colaboradores correm de um lado para o outro atônitos, estressados, apavorados.

Tudo, de preferência nas madrugadas para que a noite seja realmente infernal.

- Porra, exclamou nosso doutor, zona por zona, é melhor ir para o quarto ver sessão coruja ou filme de sacanagem que no inferno devem ser dos mais quentes. (talvez, por esses hábitos tenha ido para o inferno).

No quarto; televisor desligado, os controles sumiram e o canal a cabo foi cortado. A cama está úmida e com cheiro de xixi, o cheiro de amônia chega a arder no nariz, a porta do banheiro travou, a descarga está uma merda.

 A janela não abre.

O calor, sempre aquele próprio do local: Infernal!...

Muriçocas cruzam o ar fazendo ziiuum no ouvido, um motor de compressor faz os tímpanos tremerem, uma insônia eivada de pensamentos ruins que se avolumam com o fechar dos olhos.

Um inferno infernal; não dá!...

O melhor  voltar para a UTI, mergulhar no serviço, nos apertos, nos apuros, nos sustos e ficar firme até o dia amanhecer e a jornada terminar.

Plantão no inferno.

Será que o plantonista substituidor vem?  Vai se atrasar?  Se não houver um atraso dos diabos, é porque o plantão não é dos infernos.

 Pode ser até que nem venha.

Num certo momento sentiu que poderia ir embora.

Tentou.

Antes de sair do hospital foi informado dos muitos leitos sem visita na ala psiquiátrica.

Era com ele.

Logo ele que quase nada sabia de psiquiatria, dos protocolos e drogas empregadas em tais tratamentos.

Ah!  Arrependimento de não ter escolhido passar pela ala de psiquiatria no tempo de internato.

A grande tortura do médico é não saber. Não saber fazer; não saber se há o que fazer; não entender os mecanismos das doenças, da medicação, dos efeitos colaterais.

Torturava-o a culpa dos fracassos; do êxito apenas parcial e, mesmo nas vitórias, na casual vitória, conseguia perceber que beirou o erro e que o paciente mais se salva de que é salvo.

Ainda mais! Sabia que apenas aplicou conhecimentos e descobertas que não eram seus, que ele mesmo nunca descobriu nada.

Porém, nas falhas, no erro, no fracasso; vivia o inferno da consciência de que não estava à altura da magnitude dos encargos que lhe foram confiados. Da carga posta em seus ombros e que por uma questão de sobrevivência, aceitou, resignou-se.

 Isso tudo, lá na morada do sagaz e impiedoso tinhoso...

Num sanatório infernal (e os sanatórios geralmente já o são), sem DEF, sem Google, sem internet, sem colegas para uma troca de ideias; e uma infinidade de loucos sofrendo, fingindo, manipulando, gritando, gemendo pungentemente. Uns se agitando nos leitos, outros ficando imóveis, sem falar, não comem, ou mantem um olhar parado, de repente piscam os olhos e pedem socorro com movimentos oculares.

Nada fez... Ou, pouco fez: - Diazepam para todo mundo! Gritou.

Ou seria Haldol?

Saiu com a dúvida irrespondida a torturá-lo.

 

Sua passagem por ali prestava-se apenas a esse massacre pela ignorância diante da necessidade premente de fazer alguma coisa e não ser capaz de nada.

Restavam ainda as torturas de dar explicações para familiares sempre insatisfeitos e de julgamento inquisitório e desconfiado.

O mais humilhante seria descobrir, mais tarde, que as rotinas e percepções dali eram de domínio até do mais simples serviçal.

Enfim o plantão acabou de verdade e pôde ir em busca de uma casa vazia onde uma cama dura, um travesseiro encardido, num quarto sombrio e frio o esperavam.

Ao lado da cama, uma moringa vazia, um espiral apagado e úmido e um telefone com uma irritante luzinha piscando para lembrar que poderia tocar a qualquer momento.

E ai dele, se sentisse alívio ou prazer em poder se isolar no quartinho onde esporos de mofo, aos milhões, pairavam no ar à espera de vias respiratórias e conjuntivas sensíveis.

Até quando ficará ali... Sempre e mais uns dias.

 Sairá algum dia? - NUNCA... nunca... e nunc...

                                         

                                                                         Rilmar

De 2014 até hoje, 22/8/2020

terça-feira, 6 de outubro de 2020

IPAMERI tem Digital

  

13 de setembro de 2013 09:14

Ipameri é uma cidade personalizada. Ninguém desiste, ninguém desgruda, ninguém esquece. Quando eu digo que sou ipamerino imediatamente ecoa, repercute, acontecem respostas e manifestações de outros ipamerinos pois temos muitos pontos de identidade. Na moral, nas crenças, na cultura, no amor comum a esse nosso pedaço de Brasil que tem nome, tem charme próprio, tem digital, tem uma história da qual cada um de nós se sente partícipe, influenciador e influenciado, criador e criatura, filho e com a responsabilidade e o afeto de genitor pois genitores somos todos nós desde os primeiros pioneiros que estabeleceram seus primórdios, passando pelos incontáveis sucessores onde nos incluímos, até o mais recente ipamerino que, com certeza vai continuar a participar de sua preservação e do seu crescimento. --Somos orgulhosamente de Ipameri mas, também Ipameri é nossa. Tanto é nossa essa praça, essa igreja essas casas, como são nossos cada arrebalde, -cada cantinho, cada lenda, cada -história; assim como o conteúdo -artistico, científico e cultural. -Parabéns Ipameri. Parabéns ipamerinos de todas as épocas. Parbéns à Beth, à prefeita e a cada um que está empenhado em que esta data fique marcada. 

Nossa cidade merece!...


quarta-feira, 30 de setembro de 2020

IPAMERI - UM DIA EU VOLTO

 

IPAMERI

Um Dia Eu Volto...

                                                                                                           rilmar - 02-07-2019

Volto sim.... e te reconstituo ao jeito, tempo, modos e maneiras como te deixei. Com as ruas ladeadas por canteiros de gramas, com as sarjetas de pedra. E as calçadas rústicas, e as casas habitadas por pessoas receptivas, simpáticas e conhecidas. Alguns cachorros nas ruas. Bares, farmácias, armazéns, padarias e açougues tudo colocado em pontos sabidos e conhecidos. Horários de funcionamento sobejamente sabidos.

Voltando, eu te refaço.

Reconstruo cada detalhe da cidade que deixei. Também eu me reconstituo e corrijo rumos e caminhos que naquela época deixei de percorrer ou o fiz de maneira equivocada e assim, não cheguei a tempo e a hora onde queria.

Quero minha cidade do mesmo jeito, quero ser aquele menino que andava pela vida cheio de sonhos. Porei juízo naquela cabeça para que sonhe só sonhos de ficar, de não ir embora, de não abrir mão daquele mundo, por nada.

Vou dizer às pessoas que as quero, que são importantes para mim, que há uma interação indissolúvel entre cada uma delas e meu viver.

Vou me declarar aos amores que pretendi e nem sequer cheguei a dizer isso a qualquer delas. Ficou, pois, esse segredo preso e irrespondido dentro de mim. Seriam nãos com certeza. Mas teriam que ter sido ditos. Voltando no tempo e no espaço, eu os direi. Vou me reconciliar com muita gente. Vou pedir desculpas. Vou abrir o coração.

Quero você de novo Ipameri. Quero andar em ruas quase sem carros; caminhar em silêncio chutando pedrinhas ou caroços de mangas; distraído, pensando mil coisas, ouvindo pessoas me alertarem amistosamente.

 Meus quintais imensos indo até o córrego na rua Goiás.

Quero dormir ouvindo músicas dos parques de diversões instalados na praça do rosário.

O jardim, as moças passeando de braços dados, indo e vindo andando

na calçada da praça. Os sinos chamando para a missa, a Ave-Maria tocada na torre da Igreja. Católicos e crentes fervorosos recomendando vida reta e comportamentos cristãos.

A simplicidade. O barulho dos trens de carga nas madrugadas vindo num crescendo se aproximando e depois irem se afastando na imensidão da noite até mergulharem lentamente no silêncio da distância; minha mãe atenta, comovida e nos ensinando os sentimentos que isso inspirava. O rumor e burburinho dos trens de passageiros. O ribeirão piscoso, acolhedor, amigo; o Rio do Braço cuja distância de légua e meia era considerada longe para se ir a pé.

Quero percorrer minhas escolas; abraçar colegas; trabalhar de novo na Tipografia Minerva, no Umuarama. E vagar pelos cerrados, pelas beiras de córregos, subir nas mangueiras frondosas tentando pegar a última e derradeira manga que se exiba nas grimpas de um pé de manga desafiando a molecada.

Volto sim e é para ficar e nunca mais te deixar.

Se esse amor ainda não declarei da maneira devida e no tom tonitroante que meu peito clama; agora o faço: EU TE AMO IPAMERI!

terça-feira, 15 de setembro de 2020

O Sete de Setembro em Ipameri

 

O Sete de Setembro em Ipameri

 

Não acontecia em um dia só, ou em uma semana.  Era um período que começava por volta de meados de agosto, e ia se intensificando nos treinamentos e preparativos até atingir uma certa perfeição e com um entusiasmo esfuziante e envolvente capaz de englobar cada cidadão, cada família e toda a cidade.

O 6* Batalhão de Caçadores ruflava seus tambores, ecoava seus clarinetes e seus soldados marchavam com passos tão firmes e sincronizados que o ruflar, os clarins e a batida firme dos pés contra o solo faziam a cidade tremer. Um tremor compassado, rítmico, firme, vibrante, cheio de um patriotismo contagiante, capaz de mexer com a gente e ir, dia a dia, enchendo as almas e os corações de um patriotismo vibrante, pujante, pleno de amor à pátria.

Um ufanismo intenso e crescente a cada dia.

O momento era de extravasar todo o amor à pátria.

A pátria era nossa, nosso lugar, rincão, refúgio. 

Pátria Amada Brasil.

Cada escola se preparava esmeradamente para o sonhado dia do desfile. Sete de Setembro, dia da Pátria, da Independência.

Em cada casa havia um movimento de preparação para que os jovens estivessem vestidos e calçados de acordo com o padrão da escola: Calças ou saias impecáveis, lavadinhas, passadinhas, costuradinhas, remendadinhas, sem faltar botões.

Tênis branquinho, novo ou recomposto com água, sabão e alvaiade.

Quem não fosse desfilar também deveria estar apresentável, de banho tomado, a melhor roupa, cabelos penteados; as mulheres empoadas e com uma pinturinha, algum adereço; pois afinal iriam ver alguém da família passar marchando em sua escola olhando para a frente, passo firme e certo, corpo ereto, peito estufado, exalando orgulho e patriotismo.

Cada escola tinha um padrão de mais ou menos luxo, mas todas se empenhavam ao máximo nos treinamentos que iam desde o mês de agosto até o Sete de Setembro que era a apoteose.

Na minha escola a gente treinava com tambores bem simplesinhos, quase que improvisados e um ou outro que se conseguia emprestado. Na fase de treinamento o importante era treinar o passo, manter o alinhamento de filas e colunas, observar a distância entre o que ia à nossa frente e a gente. Para treinar, a roupa era o uniforme quase sempre muito gasto, barras às vezes puídas, desbotado, singelo ao extremo. O calçado era o que tivesse, se tivesse.  Sapatos desgastados, botinas, pés descalços, um pé calçado outro não; tudo podia. As meninas costumavam ser mais arrumadinhas e cuidadosas. Já tinham lá sua vaidade e seus propósitos.

E lá íamos nós, em marcha treino pelas ruas. Nossa professora que era também diretora, orientadora pedagógica, chefe de disciplina e proprietária da escola;  queridíssima por nós todos; ia acompanhando e escolhendo as ruas de piso mais macio e sem espinhos, de forma que fossem apropriadas para todas as condições de pés desde os bem calçados, os semi-calçados, até os  totalmente descalços.

Todos patriotas de peitos arfantes e prontos para amar e defender o nosso Brasil, dia e noite, a qualquer preço.

Ainda antes que chegasse o dia do desfile, o Exército cedia um fragmento de sua portentosa banda e um sargento para dar os últimos retoques nas escolas. O comando firme, a presença tão ilustre, o tarol bem percutido, o tamborzão surdo, sacudindo nossos tímpanos à cada batida firme do soldado de farda verde: Tudo levava a gente a se sentir verdadeiros e heroicos guerreiros prontos a lutar pela pátria até à morte, frente a quaisquer inimigos.

Chegado o dia, depois de muita peleja, muitas ordens, chamadas à disciplina, exaltação ao brio, à necessidade de nossa escola fazer bonito; recomendações de mais e mais amor à Pátria: Finalmente estávamos em forma.

A banda reforçada por um empréstimo de outra escola e um soldado do exército.

Um Colégio com grandes bandeiras fora escolhido para abrir o desfile, depois viria um outro, depois o Grupo Escolar Estadual, depois o Ginásio Estadual com todo o seu orgulho e tradição, vigor e majestade; não sei se tinha mais alguma escola, mas finalmente chegava nossa vez e, depois de nós o Exército fechando imponentemente o desfie.

Tam... tam... tararam tamtam... tararam... tararam... Era nossa bandinha e nossa escola passando plap... plap...; plap... plap...;faziam nossos pés batendo contra o solo, Acerta o passo| Olha pra a frente! Um... dois... um... dois...!

E as palmas, merecidas ou não, ecoavam na medida em que íamos passando por nossa torcida. 

 É, tinha até torcida.

E quando finalmente o desfile acabava, os patriotinhas mirins e todo mundo, menos o Exército que tinha lá sua disciplina rígida, saíamos em desabalada carreira, impando de vaidade, de alegria, de liberdade e voávamos em direção às nossas casas, rindo, conversando, comentando e loucos para chegar em casa e ouvir os comentários a respeito do desfile, do desempenho das escolas e de nosso desempenho.

Ainda haveria de passar mais uma semana até que os arroubos de patriotismo fossem se acalmando, sem nunca se extinguirem, dentro de nós.

Viva nossa Independência! Viva o Sesquicentenário de nossa Ipameri!

Rilmar – 11/09/2020

 

 

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Um Médico no Inferno

 

                      Um Médico no INFERNO

Nunca entendeu por que é que foi parar no inferno.

   Tinha qualquer coisa de Macunaima dentro de si

 

Pecou muito, luxúria e sagacidade, sempre malandro, esperto, desregrado.

Não tinha dó de ninguém, mas não chegava a ser mau.

Se percebia normal.             

Por isso ou por aquilo, fez jus ao Inferno

Médico que era, foi prontamente aproveitado.

                                          ------- X -------

Os pacientes entravam numa longa fila de intermináveis orientações e triagens.

Orientações ao cinco primeiros:  Jejum por três dias e volta ao serviço para curativos.

- É com anestesia, Doutor?

- Não se preocupe, é surpresa.... Você vai adorar...

Outros cinco: Centro Cirúrgico agora para procedimentos e limpeza em lesões profundas.

Mas, Doutor!... Não estamos em jejum...

- Estamos com um método novo. As escovas de aço, o macrótomo semi-rombo e a cama imobilizante do Doutor Broiler, além dos curarizantes e das paredes com tratamento anti ruídos.    

Dispensam anestesia.

Os seis últimos: - (por coincidência os que estavam piores) - Direto para a UTI!...

Vão ser super cuidados. Ah! Se vão.

Na UTI os pacientes sofriam muito, mas não morria ninguém.

Todo mundo já tinha morrido uma vez.

Os médicos trabalhavam para morrer, mas ninguém morria.

O médico puncionava uma subclávia, passava fio guia, dilatador, cateter; aí descobria que não tinha bomba de infusão, que o soro não estava com o equipo, que a Técnica de Enfermagem foi ao banheiro.

 Meia hora depois, depois de uma espera dos diabos, de uma luta infernal... bem, a veia estava puncionada, o cateter fixado, o soro estava pingando, mas o paciente se extubou.

- Pelo amor de Deus, sedem o paciente!  Berrava o médico.

Ao pronunciar o nome de Deus, foi repreendido e avisado do que na próxima vez iria trocar de lugar com o paciente.

O doutor amarelou, suou frio, tremeu e se desculpou morrendo de medo.

 Às vezes se apavorava, se chateava, perdia a paciência; quando no meio da noite um paciente se extubava e havia ainda mais um dúzia de pacientes intubados, puncionados, com sondas obstruídas, agitados e querendo arrancar tudo que é tubo, só para torrar o saco da equipe.

No inferno não tem moleza.

No entanto, lá acontecem, pelo menos algumas vantagens que beneficiam  a equipe:  Ninguém morre; todo mundo está ali para sofrer; ninguém dorme; todo mundo sai de coma com uns bons beliscões (estímulos dolorosos).

Troca de medicamentos é comum e sempre com muita confusão.

Uma hora sem conseguir enfiar um tudo na traquéia: Normal, o paciente aguenta.

O monitor pisca, apaga, acende, dispara alarme, pula na mesinha; por qualquer coisa, emburra e não exibe parâmetros essenciais como SPO2, PAM, traçado de ECG.

O respirador enguiça, dispara, faz ruídos estranhos emite mensagens nem sempre compreensíveis e, de vez em quando, funciona um pouquinho, só para manter vivo o sofredor.

As bombas de infusão criam um caso atrás do outro e sempre disparando alarmes. Soros sobem pelas mangueirinhas e enchem os frascos. Sangue para de pingar. Plasmas congelam nos frascos; albuminas espumam dentro dos frasquinhos e   teimam em não correr.

Pacientes esquentam e tremem de febre com reações pirogênicas pelo sangue ou plasma recebidos.

Os colaboradores correm de um lado para o outro atônitos, estressados, apavorados.

Tudo, de preferência nas madrugadas para que a noite seja realmente infernal.

- Porra, exclamou nosso doutor, zona por zona, é melhor ir para o quarto ver sessão coruja ou filme de sacanagem que no inferno devem ser dos mais quentes. (talvez, por esses hábitos tenha ido para o inferno).

No quarto; televisor desligado, os controles sumiram e o canal a cabo foi cortado. A cama está úmida e com cheiro de xixi, o cheiro de amônia chega a arder no nariz, a porta do banheiro travou, a descarga deve estar uma merda. A janela não abre.

O calor, sempre aquele próprio do local: Infernal!...

Muriçocas cruzam o ar fazendo ziiuum no ouvido, um motor de compressor faz os tímpanos tremerem, uma insônia eivada de pensamentos ruins que se avolumam com o fechar dos olhos. Um inferno infernal; não dá!...

O melhor era voltar para a UTI, mergulhar no serviço, nos apertos, nos apuros, nos sustos e ficar firme até o dia amanhecer e a jornada terminar.

Plantão no inferno.

Será que o plantonista substituidor vem?  Vai se atrasar?  Se não houver um atraso dos diabos, é porque o plantão não é dos infernos.  Pode ser até que nem venha.

Num certo momento sentiu que poderia ir embora. Tentou.

Antes de sair do hospital é informado de que há muitos leitos sem visita na ala psiquiátrica. É com ele. Logo ele que quase nada sabe de psiquiatria, dos protocolos e drogas empregadas em tais tratamentos.

A grande tortura do médico é não saber. Não saber fazer; não saber se há o que fazer; não entender os mecanismos das doenças, da medicação, dos efeitos colaterais.

Torturou-o a culpa dos fracassos; do êxito apenas parcial e, mesmo nas vitórias, na casual vitória, conseguia perceber que beirou o erro e que o paciente mais se salva de que é salvo.

Ainda mais! Sabia que apenas aplicou conhecimentos e descobertas que não são seus, que ele mesmo nunca descobriu nada.

Porém, quando há falha, quando se erra, quando fracassa; vive o inferno da consciência de que não estava à altura da magnitude dos encargos que lhe foram confiados. Da carga posta em seus ombros e que por uma questão de sobrevivência, aceitou e deixou.

 Isso tudo, lá na morada do tinhoso..

Num sanatório infernal (e os sanatórios geralmente já o são), sem DEF, sem Google, sem internet, sem colegas para uma troca de ideias, e uma infinidade de loucos sofrendo, fingindo, manipulando, gritando, gemendo pungentemente. Uns se agitando nos leitos, outros ficando imóveis, não falam, não comem, ou mantem um olhar parado, ou de repente piscam os olhos e pedem socorro com movimentos oculares.

Nada fez... Ou, pouco fez: - Diazepam para todo mundo! Gritou.

Sua passagem por ali prestava-se apenas a essa tortura pela ignorância diante da necessidade premente de fazer alguma coisa e não ser capaz de nada.

Restavam ainda as torturas de dar explicações para familiares sempre insatisfeitos e de julgamento inquisitório e desconfiado.

O mais humilhante seria descobrir, mais tarde, que as rotinas e percepções dali eram de domínio até do mais simples serviçal.

Enfim o plantão acabou de verdade e pôde ir em busca de uma casa vazia onde uma cama dura num quarto sombrio e frio o esperava.

Até quando ficará ali... Sempre.   

 Sairá algum dia...  NUNCA...

                                         

                                                                         Rilmar –

De 2014 até hoje, 22/8/2020

 

 

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Poema da Unicidade


20 de setembro de 2013 20:52
Poema da Unicidade

Dá tudo a mim, amor com sentimento;
Anda, faze-o, e, ao fazê-lo;
Aplica nisso o teu maior encanto,
Para que só de encanto
Seja o momento.

Quando digo tudo, digo amor e alma,
Pois quero que vivas em meu pensamento,
Nas nossas tristezas e nas alegrias;
Que sintamos nós, um mesmo sentimento.

Nessa homogênea unicidade,
Não temo o lento caminhar para o fim,
Nenhuma angústia pode me envolver,
Nem solidão, pois estás em mim.

Se, no entanto, em um longínquo dia,
For esse amor só uma lembrança,
Terá, talvez, sido por ter reluzido
Como só reluzem sonhos de crianças

Antes, porém que se apague,
A luz!...
Há de ter brilhado tanto e com tal fulgor,
Que todo meu ser, toda minha alma,
Terão se consumido
Nessa chama,
Nesse amor

Rilmar
(parafraseando Vinicius – em sala de aula - UniAna)

Uma Rosa ao Pé do Muro

Uma Rosa ao pé do Muro

Isso foi há muito tempo.
Era de manhã. Eu passava por um quintal cercado de muros
Junto ao pé de um dos muros vicejava uma pequena roseira.
Mais definhava que vicejava. 
Mas tinha algumas folhas verdes e emitia brotos ansiosos de vida.
Bem no meio daqueles ramos, erguendo-se mais que eles como que para se mostrar; uma rosa vermelha com tons escuros permeando o colorido. Uma Príncipe Negro, talvez.
Gotas de orvalho aqui e ali, nas pétalas aveludadas que além de nos cativar pela singela beleza ainda emanavam um perfume tão sutil e agradável que nos levava e nos curvar e aproximar a face da flor para melhor sentir o aroma.
Era eu ainda criança. Sabia pouco da vida. Sentia mais que sabia.
Ao aproximar meus olhos daquela flor, percebi espinhos no galho que a sustentava. Vi também formigas indo e vindo rápidas numa faina insana de ordenhar uns poucos pulgões que habitavam o cálice onde a flor se aninhava.
Meu amor pela flor foi imediato.
Não, guardá-la para mim; não, de arrancá-la de seu galho onde vicejava e encantava as gentes. Mas de protegê-la, de cortejá-la longamente, de revê-la muitas vezes, de saber que ela ali estaria radiante e bela para que todos a vissem e revissem. Para que seguisse perfumando o ar e encantando os olhos.
O velho muro atrás da roseira, roseira de uma única rosa, era branco amarelado e manchado de espaço em espaço, de grandes máculas irregulares e escuras semelhantes a nuvens. Na sua inserção na terra havia também aqui e acolá, nichos de musgos de um verde sombrio.
A criança, a rosa, o espinho, as formigas indo e vindo, os pulgões e os musgos.
Se alguém se detivesse para uma fotografia, ou capturasse aquela cena para um quadro, por certo guardaria uma imagem capaz de encantar plateias.
Ninguém se deteve.
 Só a criança.
Eu.
  Depois de algum tempo acomodei-me sentado em uma grande pedra que havia por perto e me detive alheio ao mundo e namorando a flor.
Quis eliminar alguns espinhos que achei não combinarem muito com  ela, também quis esmagar as formigas que parasitavam os parasitas da flor. Algum clamor da natureza me aconselhou a me deter pois também eu ali estava usufruindo o perfume, a beleza e a interação entre a terra, o sol, a magia de Deus e os seres  que em seu conjunto compunham a vida.
Deixei-me ficar ali por algum tempo distraído.
Quando já me levantava para ir embora, ainda veio um casal de borboletas voejando, se tocando e, vez por outra beijando a rosa. Duas borboletas amarelo ouro, refletindo luz, rebrilhando no bater das asas sob a luz do sol.
Pensativo, encantado me afastei em direção à minha casa. Saíra para comprar alguma coisa e já não me lembrava mais o que era.
Naquele mesmo dia, já à tardinha, ainda voltei com uma latinha de água e reguei a planta, e revi a rosa que estava mais bonita ainda e, parece que me aguardava.
Detive-me por uns momentos embevecido diante dela. Cheguei a dizer alguma coisa, mas ela se manteve muda, apenas exalando perfume e exibindo sua beleza. Se houve alguma resposta foi quando um derradeiro raio de sol pousando sobre suas pétalas a iluminou e, como num palco mágico, exuberou ainda mais seu encanto e beleza e impregnou-me ainda mais de sentimentos ao pensar que ela se exibia para mim. 
Como a penumbra do fim de dia já envolvesse tudo, tive que deixá-la e voltar ao lar.
À noite adveio uma tempestade de chuva grossa, relâmpagos imensos e ruidoso vento.
Felizmente eu dormia aconchegado à minha mãe e protegido.
Na manhã seguinte, preocupado, voltei lá. A pedra, o muro, a roseira lá estavam, porém, a minha rosa tinha ido embora. O mais certo é que tenha sido a tempestade, porém pode ser que algum enamorado a tenha colhido e presenteado uma musa e que então a flor estaria perfumando uma casa e enfeitando uma mesa, repousando em um algum vaso e deixando cair uma a uma, suas pétalas coloridas.
Talvez cumprisse apenas seu destino de rosa. 
Não serem eternas.
 Pouco mais que efêmeras é o que são.
Só restava ali, um caule vazio e a roseira tristonha com alguns brotos ainda mais viçosos e em busca de vida e com esta, com certeza nova rosa, mas nunca mais aquela que chamei de minha.
                                                                   Rilmar - 19/5/2019



quinta-feira, 23 de julho de 2020

PANDEMIA

PANDEMIA

Era um fim de dia, a luz do sol já não era tanta, não era ainda hora de a noite chegar, mas a brandura da luz do sol já permitia que a gente olhasse para o poente.
Olhando em direção ao horizonte fomos lentamente percebendo algo como se fosse uma discreta nuvem. Talvez de aves, andorinhas possivelmente.;
Só quando o fenômeno se aproximou mais é que notamos pelo silêncio, pelas formas dos que estavam à frente e pela sutileza dos movimentos, que não eram pássaros, nem morcegos, nem gafanhotos.
Impressionavam pela nuvem que formavam sendo capaz de desenhar um arco no horizonte.
Eram brancos, arredondados em sua porção anterior e se disfarçavam no restante dos corpos porque se sobrepunham em várias camadas, eram pequenos e assim se tornavam mais densos como se também obedecessem a alguma lei da nossa física.
Fantasmas, almas sem corpo foi o que lentamente se delineou até ser bastante nítido.
 Por se sobreporem em várias camadas e pela densidade somada, compunham uma nuvem capaz de arrefecer, ainda que levemente, a luminosidade que ainda restava no céu.
Vivíamos tempos de uma pandemia onde as pessoas morriam aos milhares, todos os dias, devido a alguma coisa tão pequena, inodora, invisível, silenciosa e sutil que nos parecia estarmos a mercê de alguma maldição ou castigo de Deus.
Em verdade um vírus somado à interpretação social e psicológica do ser humano.
Outra propriedade da maldição, além de adoecer e matar no mundo todo, era a indiferença que causava nas pessoas ainda não afetadas.
 Atarantada, a humanidade ignorava o mal.
 Quase não se viam os mortos já que morriam nos hospitais e eram sepultados sem contato com as famílias. Apenas se dava por falta de um ou de outro indivíduo e se ficava sabendo que partira.
As almas se desprendiam todos os dias em tal quantidade que, possivelmente, não apenas os hospitais ficavam superlotados, não só os crematórios, não só os cemitérios; mas os caminhos do céu, do purgatório e de qualquer outro destino das almas também se abarrotavam, com certeza.
Daí a profusão de fantasmas que devem ter se reunido em nuvens e perambulavam nos céus do mundo
E chegaram até ali naquele fim de tarde.
Um fantasma ocasional a gente sabia que existia.
Fantasmas em pequenos grupos eram relatados pelos notívagos contumazes e havia até comprovações.
Mas, uma nuvem de pequenos fantasmas surgida no horizonte e postada sobre a cidade, pairando, voejando e alternando posições.
Nunca tínhamos visto.
 Era inacreditável.
Havia muita coisa acontecendo nos mundos. A inversão do campo polar da terra, tempestades solares, mudanças de clima no planeta, ondas eletromagnéticas de toda ordem e cada vez mais, inconsequentemente produzidas, circundando o planeta e perpassando as mentes e os órgãos de todos os seres.  
Crateras imensas nas camadas de proteção do planeta.

O Céu era uma azáfama só. Desde a recepção onde as portas de entrada tiveram que ser abertas totalmente, tal como já acontecera na segunda guerra, tal era o número de almas que chegavam atônitas, confusas, arfantes ainda por terem vindo diretas de respiradores, além das que morreram de outras causas mas somavam-se à multidão das que vinham da pandemia. O sacrossanto pessoal do controle tinha sido triplicado e ainda tinha dificuldade de dar fluência ao grande número de recém-chegados. As instalações tinham que ser ampliadas rapidamente o que levava a improvisações, ao menos num primeiro momento. Tudo ia se resolvendo, mas demandava algum tempo e fazia com que almas e mais almas se mantivessem aqui no planeta terra, de um lado para outro enquanto aguardavam a vez de se erguerem em direção à morada eterna.
Também quem tinha outros destinos precisava que aguardar classificação e existência de vagas.
Tantos acontecimentos coexistiam com a humanidade que, pode ser que por isso, os fantasmas tão numerosos e desorientados puderam se tornar visíveis.
Nem acreditávamos no que víamos e nem é da natureza da mente humana visualizar essa outra dimensão onde as almas habitam.
Começou a crescer um medo em todo mundo.
Começamos a rezar olhando o para cima e apontando o fenômeno.
Com pouco tempo veio o padre local convocando desesperado, o povo para uma procissão de perdão, de livramento, de confissões de culpas, de pedidos a Deus, de sacrifícios. E, os que eram católicos foram se organizando em filas, vindos de todos os lados: das casas, dos bairros distantes, das vendas que iam se fechando, dos bares, da própria rua que estava apinhada de gentes temerosas, mas também curiosas. E foi se formando filas e mais filas numa grande procissão. Trouxeram paramentos às pressas, e andores, e mastros, e turíbulos com incensos e brasas inundando o ar de fumaça e cheiro, e aspersores de água benta, e rosários, e sinetas e até um púlpito portátil para o padre subir e distribuir ordens além de ir iniciando cânticos e rezas apropriadas para o momento e o evento.
Também os pastores conclamaram os seus fiéis e nossa cidade contava com pelo menos três denominações evangélicas.
 Se eram em número menor, o seu fervor soava caloroso, sonoro e cheio de uma fé capaz de remover montanhas, pelo que inspiravam a maior confiança em ser capaz de contribuir para que aquela inusitada nuvem de fantasmas fosse conduzida par perto de Deus e deixasse de nos assombrar,
Depois vieram as rezadeiras também fervorosas e prontas para invocar santos e mais santos em nosso socorro.
Vieram também os espiritualistas.
Vieram pessoas de outros povos com outras crenças e outras religiões.
Foi a maior e mais ecumênica reunião espontânea de credos e de crentes, a mais densa e fervorosa de que se tem notícia até hoje por lá. Todos oravam fervorosamente, e o padre conclamava seus fiéis a buscarem o altíssimo em suas preces e pensamentos.                                                                                            Então puderam ser vistos até com alguns detalhes.

As aparências variavam, mas a característica principal era serem pequenos, brancos e não parecerem querer nos incomodar. Talvez estivessem de passagem.
 Não se sabia.
Orávamos fervorosamente pedindo a Deus que os levasse.
A peste era a origem da profusão de fantasmas errantes que se organizava em bandos imensos, ordenados e sem outra motivação que não fosse aguardar sua vez de serem acolhidos no seu destino final. 
A grande peste era causada por seres mais invisíveis que os fantasmas; mais temíveis; tão infinitamente pequenos que seus campos magnéticos eram indetectáveis. Apenas os grandes laboratórios comprovavam a existência deles e até descreviam a forma, mas o povo não os via.
Para o povo os fantasmas eram mais concretos e, nesse instante podíamos vê-los.
 Porém, os fantasmas, exatamente os fantasmas eram a rubrica da existência da peste. Cada fantasma correspondia à perda de um ente querido.
Muitos da multidão já tinha sofrido uma ou mais perda sentida e lembrada. Vários tinha uma ou mais tristeza dentro de si acompanhada de temores de novas perdas e pela própria vida. No entanto, para a maioria, a peste despertava a curiosidade, era notícia, porém um estranho fenômeno psíquico os levava à negação ou à indiferença.
Aí começou o milagre da emanação em forma de um clarão que se ergueu a partir da multidão que orava e foi se elevando em direção à nuvem.
Na medida que a luminescência se aproximava, os seres que pairavam sobre a cidade foram se organizando numa grande formação circular e, assumindo a forma de um funil invertido, começaram a subir como um torvelinho, como se fosse um redemoinho indo em direção ao infinito. Porém de forma ordenada e de moderada velocidade.
Eram tantos que foi longo o tempo em que foram e foram subindo e indo embora. Caiu a noite e eles continuavam a entrar no torvelinho indo lentamente em direção ao seu destino. Como muitos de nós supunha ter alguém entre eles, desejávamos fervorosamente que o destino fosse os Reinos dos Céus, a eternidade celeste, Deus.
E eles continuavam a ir e ir e pela noite deve ter finalmente ido até o último deles.
Com o cair da noite, a multidão se desfez aos poucos com cada um tomando o rumo de seu lar.
 Na manhã seguinte um sol radiante iluminou o dia e as mentes. Ainda houve comentários, mas predominava uma postura meditativa e uma expressão de esperança e otimismo.
Pode ser que em várias partes do mundo tenha se repetido fenômenos semelhantes pois a pandemia se enfraqueceu, as vacinas chegaram a cada ser humano existente, efeitos manadas também se fizeram sentir; os vírus, de tanto se mutarem acabaram meio inertes e voltando a habitar somente os morcegos chineses.
Durante um longo tempo a humanidade se ocupou trabalhando arduamente, se recompondo, reorganizando, resgatando, repondo conhecimentos, refazendo, limpando, reestruturando o muito que foi destruído mesmo sem bombas.
O emocional demandou mais tempo.
Muita coisa era sem conserto.
Desde então cientistas do mundo inteiro passaram a se empenhar na preservação do ambiente invisível que nos cerca promovendo a limpeza do excesso de ondas e emanações que poluem o espaço atmosférico onde tudo e todos estamos mergulhados.
No entanto percebia-se claramente que os que aqui ficaram estavam tendo mais uma oportunidade.

21/07/2020    - rilmar