O Urubu
Calvo
Resgatei aquele
filhote de urubu quando ele ainda era uma criança. Pobre ave...! Simpática, cativante e totalmente
coberta de plumas brancas.
Estava caído
no quintal e iria morrer de frio na noite gelada e de muita chuva.
Fui dar uma
última olhada no fundo do quintal, que não era tão grande e percebi aquele
galináceo no escuro e dando pulos incertos em minha direção.
Digo galináceo
devido à minha primeira impressão ao percebê-lo cambaleante na escuridão.
Aproximei-me,
com uma velha lanterna, tentando iluminar o canto escuro onde o ser alado se
encontrava.
A
lanterninha emitia um fachozinho mambembe, fraco, avermelhado e ainda
atrapalhado pelos pingos da chuva e uma nevoazinha que pairava no ar. A trave
de ligar e desligar a lanterna, velha como a própria lanterna, desgastada e
impregnada de restos de suores e oleosidades dos dedos que já a haviam manipulado
um sem número de vezes; não obedecia direito e daí, a luz emitida era trêmula,
amarelada e fraquinha.
Também as
pilhas e os contatos não deveriam estar ajudando muita coisa.
Ainda assim
acabei por localizar o coitadinho.
Um filhote
de urubu, caído não sei de onde.
Apanhei um
saco de aniagem, abri bem a entrada dele e envolvi o entanguido filhote e depois
o levei para nosso porão onde o meti no meio de uns panos velhos, porém
sequinhos e quentes.
Não sabendo direito o que é que filhotes de
urubus comem, inventei um escaldado com carne moída e um pouco de fubá de milho.
Continha carne e estava morninho, mais para quente. O bicho aceitou e foi
engolindo apressadamente as porções que eu lhe ofertava. Guloso e impetuoso.
Comia e me ensinava como alimentá-lo. Em seguida se acomodou num canto, no meio
das roupas velhas e ficou quietinho.
Afastei-me
pensando que quando voltasse já não o encontraria mais ali.
No entanto,
no dia seguinte, o filhote de urubu estava lá firme e forte. Não levou tempo
nenhum até que ele nos adotasse como família e todos na casa também passassem a
gostar do bichinho emplumado.
Andava pela
casa toda.
Dava notícia
de tudo que acontecia na cozinha.
Guloso,
aprendeu a comer comida de gente e andava atrás das pessoas como se fosse um
franguinho daqueles que chamamos de tute.
Comia, dormia
e corria atrás da gente pela casa o tempo todo.
Depois, na
medida em que foi crescendo, começou a trocar a plumagem branca por penas
negras retintas no corpo todo, menos na cabeça e pescoço que iam escurecendo e
assumindo uma cor preta também, mas de um preto fosco e com sobras de pele de
forma que se formavam rugas e fazia o bicho ficar até engraçado de tão feio.
Feio,
desengonçado, intolerante com estranhos, porém muito querido por todos da casa.
Acabou
ficando amigo do cachorro e do gato.
O gato mantinha a amizade um pouco à distância
na medida em que o urubu ficava maior do que ele, tomava sua comida e dava-lhe
umas bicadonas robustas quando queriam a mesma coisa e partiam para a disputa.
O cachorro
era enorme e havia um respeito mútuo muito mais interessante para o urubu do que
para ele. Como não havia outro animal para o cachorro brincar, já que cão e
gato não se dão bem, iam além da simples tolerância e brincavam de correr, de
esconder, de bicar brincando e de morder com cuidado. Às vezes se engalfinhavam
e havia necessidade de ação humana para moderá-los.
Bastava um
ralhar brando com o cão que o soltava e, logo voltavam às brincadeiras.
Houve um dia
em que o cachorro estava dormindo e o urubu sentindo-se só, resolveu acordá-lo
dando-lhe umas bicadas no focinho. Nesse dia quase perdemos nosso enteado. Cachorro
dormindo, pode se assustar pensando estar sendo atacado e partir com tudo
contra o possível inimigo. Ainda bem que a tremenda bocada que ele deu, pegou
nosso urubu meio de lado e as penas que já eram bastante e rijas, o protegeram
dando tempo à nossa ação de acudir.
Os dias iam
passando e o bicho ia, dia a dia, apresentando novidades seja, na quantidade de
penas, na envergadura devido às asas que iam crescendo, no bico que se
destacava, na calvície que ia do pescoço até à junção do crânio com o bico.
Finalmente
chegou o dia em que ele começou a dar uns pulinhos e correr pelo quintal, numa
manhã ensolarada. Corria, pulava e dava umas batidas de asas como se fosse para
se equilibrar melhor. Foi e veio de um lugar para outro uma porção de vezes até
que, em dado momento saiu do chão ainda meio atabalhoado e foi pousar na cumeeira
da casa onde ficou de asas abertas experimentando as correntes de ar.
Percebemos
logo as intenções dele e tentamos fazer com que desistisse.
Chamamos,
fizemos gestos, oferecemos guloseimas, trouxemos o cachorro amigo para ver se o
convencíamos, mas ele continuou naquela postura de asas abertas, até que sentiu
o momento e se deixou levar pelas correntes de ar ascendentes, dando umas
batidas de asas como se remasse imerso no fluido. Fez alguns giros contornando
a casa, o quintal e passando sobre nós que olhávamos fazendo gestos de volta, volta...
e, finalmente de despedida.
Subiu, subiu
e foi indo e indo fazendo círculos, ficando cada vez menor e se afastando cada
vez mais, galgando espaço rumo ao azul do céu.
Então o
demos por perdido para nós e livre para se assenhorar de seu destino como
deveria ser.
O dia foi
cheio e passou rápido. Caiu a tarde e não demorou muito para que o sol se escondesse
e a noite chegasse.
Vieram
outros dias, outras noites.
Nosso urubu não dava notícia.
Seria um
daqueles tantos que que víamos dando voltinhas no alto do céu como sempre aconteceu?
Chegou um momento
em que nem perdíamos mais o nosso tempo olhando o céu a procura daquele ingrato.
Deu-se
então, que em um dia bem à tardinha, ouvimos um barulho de ruflar de asas e crocitar
adolescente e cheio de us.
Corri até o
quintal tentando olhar por cima do telhado e vi que ele voltara. Não estava só.
Com ele
estavam duas prováveis fêmeas urubus e não paravam de se bicarem; elas debicando
carinhosas e ele, no maior desplante, bicando uma e a outra repetidamente.
Ficaram ali
namorando e crocitando, andando sobre o telhado aluindo telhas, por um bom
tempo. Depois, como a noite caísse, alçaram voo e foram pousar no alto de um
imenso angico não muito distante e por lá ficaram, certamente, até que o sol,
no dia seguinte lhes propiciasse correntes quentes ascendentes para tornarem a
subir em direção ao céu.
Não sei se
urubus costumam formar par constante, mas o nosso, cada vez que vinha, trazia consigo
novas amigas. Sempre muito carinhosas, elegantes e com a beleza de serem
saudáveis, brilhosas e altivas.
Ainda hoje,
ele vez por outra volta e o reconhecemos pelos modos que conserva de sempre estar
esperando que lhe ofereçamos algum petisco e esticar o bico num gesto com a cabeça
e o desnudo pescoço enrugado próprio dos urubus. Folgado, simpático, malandro, mas
nosso amigo para sempre.
15/02/2021 ---- rilmar