sábado, 20 de fevereiro de 2021

O URUBU CALVO

 

O Urubu Calvo

 

Resgatei aquele filhote de urubu quando ele ainda era uma criança.  Pobre ave...! Simpática, cativante e totalmente coberta de plumas brancas.

Estava caído no quintal e iria morrer de frio na noite gelada e de muita chuva.

Fui dar uma última olhada no fundo do quintal, que não era tão grande e percebi aquele galináceo no escuro e dando pulos incertos em minha direção.

Digo galináceo devido à minha primeira impressão ao percebê-lo cambaleante na escuridão.

Aproximei-me, com uma velha lanterna, tentando iluminar o canto escuro onde o ser alado se encontrava.

A lanterninha emitia um fachozinho mambembe, fraco, avermelhado e ainda atrapalhado pelos pingos da chuva e uma nevoazinha que pairava no ar. A trave de ligar e desligar a lanterna, velha como a própria lanterna, desgastada e impregnada de restos de suores e oleosidades dos dedos que já a haviam manipulado um sem número de vezes; não obedecia direito e daí, a luz emitida era trêmula, amarelada e fraquinha.

Também as pilhas e os contatos não deveriam estar ajudando muita coisa.

Ainda assim acabei por localizar o coitadinho.

Um filhote de urubu, caído não sei de onde.

Apanhei um saco de aniagem, abri bem a entrada dele e envolvi o entanguido filhote e depois o levei para nosso porão onde o meti no meio de uns panos velhos, porém sequinhos e quentes.

 Não sabendo direito o que é que filhotes de urubus comem, inventei um escaldado com carne moída e um pouco de fubá de milho. Continha carne e estava morninho, mais para quente. O bicho aceitou e foi engolindo apressadamente as porções que eu lhe ofertava. Guloso e impetuoso. Comia e me ensinava como alimentá-lo. Em seguida se acomodou num canto, no meio das roupas velhas e ficou quietinho.

Afastei-me pensando que quando voltasse já não o encontraria mais ali.

No entanto, no dia seguinte, o filhote de urubu estava lá firme e forte. Não levou tempo nenhum até que ele nos adotasse como família e todos na casa também passassem a gostar do bichinho emplumado.

Andava pela casa toda.

Dava notícia de tudo que acontecia na cozinha.

Guloso, aprendeu a comer comida de gente e andava atrás das pessoas como se fosse um franguinho daqueles que chamamos de tute.

Comia, dormia e corria atrás da gente pela casa o tempo todo.

Depois, na medida em que foi crescendo, começou a trocar a plumagem branca por penas negras retintas no corpo todo, menos na cabeça e pescoço que iam escurecendo e assumindo uma cor preta também, mas de um preto fosco e com sobras de pele de forma que se formavam rugas e fazia o bicho ficar até engraçado de tão feio.

Feio, desengonçado, intolerante com estranhos, porém muito querido por todos da casa.

Acabou ficando amigo do cachorro e do gato.

 O gato mantinha a amizade um pouco à distância na medida em que o urubu ficava maior do que ele, tomava sua comida e dava-lhe umas bicadonas robustas quando queriam a mesma coisa e partiam para a disputa.

O cachorro era enorme e havia um respeito mútuo muito mais interessante para o urubu do que para ele. Como não havia outro animal para o cachorro brincar, já que cão e gato não se dão bem, iam além da simples tolerância e brincavam de correr, de esconder, de bicar brincando e de morder com cuidado. Às vezes se engalfinhavam e havia necessidade de ação humana para moderá-los.

Bastava um ralhar brando com o cão que o soltava e, logo voltavam às brincadeiras.

Houve um dia em que o cachorro estava dormindo e o urubu sentindo-se só, resolveu acordá-lo dando-lhe umas bicadas no focinho. Nesse dia quase perdemos nosso enteado. Cachorro dormindo, pode se assustar pensando estar sendo atacado e partir com tudo contra o possível inimigo. Ainda bem que a tremenda bocada que ele deu, pegou nosso urubu meio de lado e as penas que já eram bastante e rijas, o protegeram dando tempo à nossa ação de acudir.

Os dias iam passando e o bicho ia, dia a dia, apresentando novidades seja, na quantidade de penas, na envergadura devido às asas que iam crescendo, no bico que se destacava, na calvície que ia do pescoço até à junção do crânio com o bico.                                                                                               

Finalmente chegou o dia em que ele começou a dar uns pulinhos e correr pelo quintal, numa manhã ensolarada. Corria, pulava e dava umas batidas de asas como se fosse para se equilibrar melhor. Foi e veio de um lugar para outro uma porção de vezes até que, em dado momento saiu do chão ainda meio atabalhoado e foi pousar na cumeeira da casa onde ficou de asas abertas experimentando as correntes de ar.

Percebemos logo as intenções dele e tentamos fazer com que desistisse.

Chamamos, fizemos gestos, oferecemos guloseimas, trouxemos o cachorro amigo para ver se o convencíamos, mas ele continuou naquela postura de asas abertas, até que sentiu o momento e se deixou levar pelas correntes de ar ascendentes, dando umas batidas de asas como se remasse imerso no fluido. Fez alguns giros contornando a casa, o quintal e passando sobre nós que olhávamos fazendo gestos de volta, volta... e, finalmente de despedida.

Subiu, subiu e foi indo e indo fazendo círculos, ficando cada vez menor e se afastando cada vez mais, galgando espaço rumo ao azul do céu.

Então o demos por perdido para nós e livre para se assenhorar de seu destino como deveria ser.

O dia foi cheio e passou rápido. Caiu a tarde e não demorou muito para que o sol se escondesse e a noite chegasse. 

Vieram outros dias, outras noites.

 Nosso urubu não dava notícia.

Seria um daqueles tantos que que víamos dando voltinhas no alto do céu como sempre aconteceu?

Chegou um momento em que nem perdíamos mais o nosso tempo olhando o céu a procura daquele ingrato.

Deu-se então, que em um dia bem à tardinha, ouvimos um barulho de ruflar de asas e crocitar adolescente e cheio de us. 

Corri até o quintal tentando olhar por cima do telhado e vi que ele voltara. Não estava só.

Com ele estavam duas prováveis fêmeas urubus e não paravam de se bicarem; elas debicando carinhosas e ele, no maior desplante, bicando uma e a outra repetidamente.

Ficaram ali namorando e crocitando, andando sobre o telhado aluindo telhas, por um bom tempo. Depois, como a noite caísse, alçaram voo e foram pousar no alto de um imenso angico não muito distante e por lá ficaram, certamente, até que o sol, no dia seguinte lhes propiciasse correntes quentes ascendentes para tornarem a subir em direção ao céu.

Não sei se urubus costumam formar par constante, mas o nosso, cada vez que vinha, trazia consigo novas amigas. Sempre muito carinhosas, elegantes e com a beleza de serem saudáveis, brilhosas e altivas.

Ainda hoje, ele vez por outra volta e o reconhecemos pelos modos que conserva de sempre estar esperando que lhe ofereçamos algum petisco e esticar o bico num gesto com a cabeça e o desnudo pescoço enrugado próprio dos urubus. Folgado, simpático, malandro, mas nosso amigo para sempre.

                                      15/02/2021      ---- rilmar                                                                                          

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

PRONTO SOCORRO

 

                           -   III  -

 

                    --    PRONTO SOCORRO ----                                                           (Um médico, finalmente no céu)


Bem dormido, refeito em suas emoções e sentimentos, experimentava uma alegria tão boa, tão plena, tão calma como nunca experimentara antes e nem sequer imaginara pudesse haver tão envolvente estado de alma.

Foi ao café e percebia em si umas mudanças. Emanava afeição. Era também receptivamente aceito e querido por todos. Sentia isso nos olhos, nos sorrisos, nas expressões faciais.

Tinha tempo.

Sendo infinito, o tempo ali nem era considerado ou sentido. O ter tempo não causava nenhum enfado. Pelo contrário contribuía para aquele estado de alma que sentia. Cumprimentou todo mundo com alegria e eram muitos os que tomavam café em algumas mesas distribuídas pelo ambiente.

Em cada um que abraçava reconhecia um amigo de velhos tempos, um colega de turmas desde o primário, ginasial, científico, faculdade, residência, plantões. Também as pessoas que de maneiras mais simples, até despercebidas fizeram parte de sua curta existência aqui na Terra, muitas já estavam lá e o abraçavam alegres, simpáticas, espontâneas.

Os abraços transmitiam mil coisas boas. Eram aconchegos acolhedores. Eram afeto terno, fraterno, transmitindo um bem querer e uma fraternidade quase esquecida entre nós.

Os padecimentos sofridos no inferno serviram para aflorar-lhe a sensibilidade

Um novo sentir e receptividade, aceitação e afeto tão à flor da pele e que ele, ao mesmo tempo recebia e emanava.

 Durante a vida, fora imperfeito em dar os afetos que buscara.

Agora ali estava experimentando esse ambiente novo e surpreendente momento a momento.

Depois do café; novamente para o hospital; seu mundo, seu reino, seu ambiente.

Hoje o esperava um Plantão.

Plantão é um emaranhado de apertos, sucessos, desafios glórias, derrotas cansaço e muitos sustos.

DEUS – será um capítulo a parte

 

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Vamos aos plantões que o doutor já está atrasado.

Também os plantonistas têm acesso próprio ao colossal Hospital. Entram, apanham vestimentas apropriadas para a atuação no plantão, vão ao vestiário, se trocam e saem de lá bem à vontade dentro do grosso blusão que tem grandes bolsos na frente e tamanhos mais ou menos padronizados, de forma tal que um dos três tamanhos existentes vista bem pessoas magras, gordas, altas ou baixas.

 Como há um grande orgulho em merecer vestir aquelas roupas, todo mundo se sente bem, bonito e sorridente dentro da indumentária.

Ora!... Direis; e tem pronto-socorro no céu?

Bem, a impressão que tenho é que se tratasse de um tipo de hospital regional.

Entre o inferno e o céu, podem talvez existir variadas instâncias distribuídas vertical e lateralmente.

Assim o universo transcendental deve ter muitas moradas e por elas passam, estagiam, habitam; uma infinidade de almas que vão lentamente se adaptando, quase diria se reeducando, mas o termo é muito cheio de conotações negativas.

 Enfim, é possível que nem todo mundo possa se ver, de repente, no Paraíso sem causar perturbações devido aos modos, costumes, egoísmos, paixões, eivados de defeitos levados daqui desse nosso mundo.

Tintim por tintim, com detalhes, eu não sei. Só escrevo o que me foi passado.

O fato é que os saguões amplos e confortáveis onde pacientes em geral esperavam estavam cheios.

Havia alas separando grupos de patologias, especialidades e os graus de urgências.

Não estava só, no atendimento.

Não o angustiava o número de pessoas que teriam que atender.

Os pacientes esperavam com naturalidade. Aceitavam a seleção por urgência e tinham algum tipo de atenção já ali onde esperavam. Eram avaliados, informados, assistidos com palavras, água, cafezinho, música, orientações, alívio de dores; quando possível.

Iniciados os atendimentos, no consultório e nos boxes de urgência chegava de tudo. A realização de médico para ele era essa diversidade de desafios para os quais se preparara a vida inteira.

Estava ali como generalista.  Poderia ser chamado a ajudar colegas, ser ajudado e até especificamente assumir uma ou outra cirurgia de urgência ou emergência. Porém uma equipe de retaguarda devia cuidar das ações que demandassem um longo tempo. A ele caberia dar os primeiros passos diagnósticos, estancar sangramentos, fazer todos os procedimentos iniciais de emergência, tratamentos clínicos urgentes, estabilizar e encaminhar os casos de especialidades ou resolutividade mais prolongada.

     Antes de ir para o consultório passou pelos boxes viu dois pacientes estabilizados e dormindo, no mais eram macas vazias, arrumadas esperando pacientes. Cumprimentou o pessoal, em sua maioria jovens moças, exercendo a função de Técnicas de Enfermagem. 

    Mal se sentou na cadeira do consultório e já foi entrando um jacaré de pronto socorro.

    Antigo; sobejamente conhecido de todos: dos médicos, enfermagem, porteiro, segurança, do pessoal da farmácia, pessoal da limpeza, motoristas e até de outros jacarés.                                                    

    Jacarés em PS são pessoas, tipos, profundamente adaptados que costumam usar o pronto socorro como se fosse parte de suas propriedades.

     Usam quando bem entendem.

    São espertos, manipuladores, sabem muito bem o que querem e como conseguir.

     Quer um soro na veia? Vai ao PS com uma boa história e consegue.

     Voltaren injetável? Vai com história de dor nas costas, gemendo e claudicando, e fazendo caretas e pronto: vai um Diclofenaco IM mais uma Dipirona EV.

    Aminofilina no soro mais um tubinho de O2 no nariz?  Tendo a patologia crônica, é só deixar descompensar e comparecer no horário daquele médico bonzinho que dá tapinha de camaradagem nas costas, não enche o saco perguntando pelo cigarro nem pelo uso dos remédios; chama a Téc. de Enfermagem e manda instalar tudo: soro, O2, Aminofilina e até a pitadinha de corticoide de que o jacaré tanto gosta. Se não puser ele pergunta: Não vai pôr o corticoide?

    Tem o jacaré da ressaca desidratado e trêmulo, do pitiatismo, da taquiarritmia pós alcoólica, do atestado por não ter ido ao trabalho, da receitinha azul para comprar controlados, os pitiáticos que chegam desacordados com contraturas na face e piscando miúdo, desesperados e apavorando a família. Mobilizam para si todas as atenções e o atendimento; mas uma característica é que todos ali do PS já os conhecem já que de dias em dias, comparecem ao serviço.

     Discutir com eles é inútil. Argumentam, gemem e colocam o público contra o serviço e o médico.

     O importante é que os jacarés têm macetes para entrar na fila de espera em posição privilegiada, têm ótimas histórias para dirigir o raciocínio dos médicos, são amigos de muita gente do PS, conseguem o tratamento quando bem querem, dormem a noite toda no PS, ou melhoram de repente e vão de alta à hora em que bem lhes aprouver.

 Os da receitinha azul de controlados, com esses você pode discutir um pouco e depois ceder, ou pode ceder de pronto e continuar trabalhando. Tem os que quase tiveram infarto uma certa vez e querem um ECG.

 Se não fizermos o ECG, com certeza o infarto virá.

     Os histéricos mormente são urgentes e repetitivos e por isso jacarés.

    Namorados que levaram um fora, namoradas que se sentem rejeitadas, mulheres cujos maridos só chegam bêbados e nas madrugadas, jovens que saíram mal no vestibular, mães preocupadas com filhos que não dão notícia, endividados, abandonados, traídos, etc., etc.

    Às vezes é melhor um jacaré que uma outra emergência.

    No mais das vezes a emergência traz mais satisfação, mormente quando logramos êxito.

    Porém os Jacarés podem nos trazer surpresas quando paramos para ouvi-los e arrependimentos, geralmente, pelo que deixamos de fazer.

    Sempre temos uma solução.

    Normalmente os tratamos com respeito e até com solidariedade e afetividade pois sofrem dores da alma ou são carentes e percebem que o melhor tratamento está ali e vão buscá-lo a seu modo e da maneira que podem.

     Talvez estejam ali dando um grito desesperados pois nem têm mais ânimo ou coragem de confessar o que lhes vai por dentro e os consomem.

     Jacaré e Pronto Socorros estarão sempre ligados. Paciência, no céu não falta.

    Um médico de seu porte e tão altamente preparado, submetido ao cotidiano de um PS. É algo como colocar um general entre infantes combatendo em batalha campal.

     Porém nosso Linneu, o grande médico, é capaz de se adaptar às mais diferentes situações, capaz de fazer uma leitura do ser humano e entender o que lhe vai por dentro e assim lidar com os mais importantes personagens da sociedade sem perder a capacidade de auscultar o simples e entender suas razões e seu sofrer, seus caminhos escolhidos mais por ser premido que por livre escolha.

     Daí foram chegando convulsões, acidentes ofídicos, placenta retida, partos urgentes porque já quase expulsivos, cortes, febres, desidratações... Tudo dentro do dia a dia dos PS. Estranhamente, nenhum auto envenenamento.

     Pronto Socorro é uma área de rotina, de aprendizado, mas também da rapidez de raciocínio, da capacidade de reativar conhecimentos até dos primeiros anos da faculdade de medicina. Estalo, conhecimentos, reflexo, destemor, ação, paciência, vigor físico, psíquico e mental.  Tudo isso ali é necessário.  

     É um ambiente de realização e afirmação do médico. Talvez, por isso exista no céu.

      Não ficou no PS até o fim do plantão. Com poucas horas chamaram pelo seu nome no alto falante, o som era difuso e nítido, vinha de todos os lados, mas com uma suavidade que nem assustava quem era chamado nem incomodava ninguém.

     Deslocado para uma outra sessão, afasta-se dando recomendações, mas sem perder a alegria e a sensação de prazer em ser útil e o orgulho de estar sendo requerido.

                                         Pré-fim   05/2/2021