terça-feira, 25 de agosto de 2020

Um Médico no Inferno

 

                      Um Médico no INFERNO

Nunca entendeu por que é que foi parar no inferno.

   Tinha qualquer coisa de Macunaima dentro de si

 

Pecou muito, luxúria e sagacidade, sempre malandro, esperto, desregrado.

Não tinha dó de ninguém, mas não chegava a ser mau.

Se percebia normal.             

Por isso ou por aquilo, fez jus ao Inferno

Médico que era, foi prontamente aproveitado.

                                          ------- X -------

Os pacientes entravam numa longa fila de intermináveis orientações e triagens.

Orientações ao cinco primeiros:  Jejum por três dias e volta ao serviço para curativos.

- É com anestesia, Doutor?

- Não se preocupe, é surpresa.... Você vai adorar...

Outros cinco: Centro Cirúrgico agora para procedimentos e limpeza em lesões profundas.

Mas, Doutor!... Não estamos em jejum...

- Estamos com um método novo. As escovas de aço, o macrótomo semi-rombo e a cama imobilizante do Doutor Broiler, além dos curarizantes e das paredes com tratamento anti ruídos.    

Dispensam anestesia.

Os seis últimos: - (por coincidência os que estavam piores) - Direto para a UTI!...

Vão ser super cuidados. Ah! Se vão.

Na UTI os pacientes sofriam muito, mas não morria ninguém.

Todo mundo já tinha morrido uma vez.

Os médicos trabalhavam para morrer, mas ninguém morria.

O médico puncionava uma subclávia, passava fio guia, dilatador, cateter; aí descobria que não tinha bomba de infusão, que o soro não estava com o equipo, que a Técnica de Enfermagem foi ao banheiro.

 Meia hora depois, depois de uma espera dos diabos, de uma luta infernal... bem, a veia estava puncionada, o cateter fixado, o soro estava pingando, mas o paciente se extubou.

- Pelo amor de Deus, sedem o paciente!  Berrava o médico.

Ao pronunciar o nome de Deus, foi repreendido e avisado do que na próxima vez iria trocar de lugar com o paciente.

O doutor amarelou, suou frio, tremeu e se desculpou morrendo de medo.

 Às vezes se apavorava, se chateava, perdia a paciência; quando no meio da noite um paciente se extubava e havia ainda mais um dúzia de pacientes intubados, puncionados, com sondas obstruídas, agitados e querendo arrancar tudo que é tubo, só para torrar o saco da equipe.

No inferno não tem moleza.

No entanto, lá acontecem, pelo menos algumas vantagens que beneficiam  a equipe:  Ninguém morre; todo mundo está ali para sofrer; ninguém dorme; todo mundo sai de coma com uns bons beliscões (estímulos dolorosos).

Troca de medicamentos é comum e sempre com muita confusão.

Uma hora sem conseguir enfiar um tudo na traquéia: Normal, o paciente aguenta.

O monitor pisca, apaga, acende, dispara alarme, pula na mesinha; por qualquer coisa, emburra e não exibe parâmetros essenciais como SPO2, PAM, traçado de ECG.

O respirador enguiça, dispara, faz ruídos estranhos emite mensagens nem sempre compreensíveis e, de vez em quando, funciona um pouquinho, só para manter vivo o sofredor.

As bombas de infusão criam um caso atrás do outro e sempre disparando alarmes. Soros sobem pelas mangueirinhas e enchem os frascos. Sangue para de pingar. Plasmas congelam nos frascos; albuminas espumam dentro dos frasquinhos e   teimam em não correr.

Pacientes esquentam e tremem de febre com reações pirogênicas pelo sangue ou plasma recebidos.

Os colaboradores correm de um lado para o outro atônitos, estressados, apavorados.

Tudo, de preferência nas madrugadas para que a noite seja realmente infernal.

- Porra, exclamou nosso doutor, zona por zona, é melhor ir para o quarto ver sessão coruja ou filme de sacanagem que no inferno devem ser dos mais quentes. (talvez, por esses hábitos tenha ido para o inferno).

No quarto; televisor desligado, os controles sumiram e o canal a cabo foi cortado. A cama está úmida e com cheiro de xixi, o cheiro de amônia chega a arder no nariz, a porta do banheiro travou, a descarga deve estar uma merda. A janela não abre.

O calor, sempre aquele próprio do local: Infernal!...

Muriçocas cruzam o ar fazendo ziiuum no ouvido, um motor de compressor faz os tímpanos tremerem, uma insônia eivada de pensamentos ruins que se avolumam com o fechar dos olhos. Um inferno infernal; não dá!...

O melhor era voltar para a UTI, mergulhar no serviço, nos apertos, nos apuros, nos sustos e ficar firme até o dia amanhecer e a jornada terminar.

Plantão no inferno.

Será que o plantonista substituidor vem?  Vai se atrasar?  Se não houver um atraso dos diabos, é porque o plantão não é dos infernos.  Pode ser até que nem venha.

Num certo momento sentiu que poderia ir embora. Tentou.

Antes de sair do hospital é informado de que há muitos leitos sem visita na ala psiquiátrica. É com ele. Logo ele que quase nada sabe de psiquiatria, dos protocolos e drogas empregadas em tais tratamentos.

A grande tortura do médico é não saber. Não saber fazer; não saber se há o que fazer; não entender os mecanismos das doenças, da medicação, dos efeitos colaterais.

Torturou-o a culpa dos fracassos; do êxito apenas parcial e, mesmo nas vitórias, na casual vitória, conseguia perceber que beirou o erro e que o paciente mais se salva de que é salvo.

Ainda mais! Sabia que apenas aplicou conhecimentos e descobertas que não são seus, que ele mesmo nunca descobriu nada.

Porém, quando há falha, quando se erra, quando fracassa; vive o inferno da consciência de que não estava à altura da magnitude dos encargos que lhe foram confiados. Da carga posta em seus ombros e que por uma questão de sobrevivência, aceitou e deixou.

 Isso tudo, lá na morada do tinhoso..

Num sanatório infernal (e os sanatórios geralmente já o são), sem DEF, sem Google, sem internet, sem colegas para uma troca de ideias, e uma infinidade de loucos sofrendo, fingindo, manipulando, gritando, gemendo pungentemente. Uns se agitando nos leitos, outros ficando imóveis, não falam, não comem, ou mantem um olhar parado, ou de repente piscam os olhos e pedem socorro com movimentos oculares.

Nada fez... Ou, pouco fez: - Diazepam para todo mundo! Gritou.

Sua passagem por ali prestava-se apenas a essa tortura pela ignorância diante da necessidade premente de fazer alguma coisa e não ser capaz de nada.

Restavam ainda as torturas de dar explicações para familiares sempre insatisfeitos e de julgamento inquisitório e desconfiado.

O mais humilhante seria descobrir, mais tarde, que as rotinas e percepções dali eram de domínio até do mais simples serviçal.

Enfim o plantão acabou de verdade e pôde ir em busca de uma casa vazia onde uma cama dura num quarto sombrio e frio o esperava.

Até quando ficará ali... Sempre.   

 Sairá algum dia...  NUNCA...

                                         

                                                                         Rilmar –

De 2014 até hoje, 22/8/2020