O Despertador
Tic-Tac... tic-tac... Tic...Tac...
Ouvi como sendo um SOS.
Jogaram nosso velho despertador fora, num monturo no fundo do quintal, mas o velho relógio era tão teimoso e tão valente, que continuou, ou voltou, a fazer tique tac de dentro do lixo.
Cheguei mais perto a ver se não era só uma ilusão minha.
O som ficou mais nítido, mais claro, melhor audível.
Tic tac... tic tac.
Bateu uma saudade, dó de deixar o velho relógio ali no lixo, emperrando cada vez mais e se desfazendo aos poucos.
Fui sentindo um grande aperto no coração.
Pode até que fosse um pouco de usura de minha parte.
Não cheguei a analisar isso.
Com mais dois ou três tic tacs, não me contive e peguei duas ferramentas de jardinagem, pequenas e pouco contundentes e comecei a afastar pouco a pouco o lixo. Era um lixo fofo, recente, composto mais por folhas mortas e capins arrastados com rastelo recentemente. Na faina exumatória, formigas assustadas surgiam de quando em vez, um ou outro cupim de tesourinha aberta e o resto era um pouco de terra e as folhas e capins
Limpa que limpa, afasta que afasta, fui indo lixo a dentro, até que senti que tocava a estrutura metálica do nosso despertador. Dali para frente, trabalhei com as mãos, com os dedos e, com muito jeito, acabei por libertá-lo totalmente do monturo.
Depois limpei mais dando umas pancadinhas leves com a mão, esfregando na roupa, passando um pano, assoprando daqui e dali, passando outro pano mais limpo e seco, arrisquei outras batidelas com as mãos, cheguei a usar um pouco de álcool, ou melhor um caneco de pinga, na remoção da sujeira e finalmente considerei satisfatória a limpeza.
Não era o bastante. O relógio teria que trabalhar e produzir.
Trabalho de relógio é fazer tic e tac e trrilimmm... trrilimmm. E ficar vigiando o tempo.
Produção de relógio é nos dar a hora certa e nos acordar de manhã cedo.
Como a noite já caísse, embrulhei bem o meu relógio. Agora era meu. Sempre quis ter um relógio para entrar dentro e entender esse milagre da mecânica. Meu relógio para deixar no meu quarto fazendo barulhinho de relógio e servindo de companhia.
No outro dia bem cedo, era um fim de semana, peguei o relógio, coloquei-o sobre um caixote, à guisa de mesa, e fui tratar de melhorá-lo. Tirei a tampa de trás e vi que por dentro estava preservado das sujeiras do monturo. Tinha alguma poeira, mas com infinita paciência, alguns cotonetes que peguei nos guardados de minha mãe, minha caneca de pinga onde, vez por outra ia molhando os cotonetes; fui limpando, limpando até me dar por satisfeito. Depois fui na máquina de costuras e tomei emprestado uma almotolia de óleo singer e andei pingando em vários pontos o bendito óleo desengripante.
É quase um milagre o que esse oleozinho faz.
Ficou muito bom. Se já conseguia trabalhar, um pouco claudicante, com a limpeza e umas torcidas na borboletinha de dar corda então, foi como se ressuscitasse. Voltou com tudo. Parecia novo no funcionamento da maquinária. Não me atrevi hora nenhuma a mexer nos mecanismos. Pareciam complicados demais.
Olhando pelo lado do mostrador, ainda era o nosso velho relógio com números em algarismo romano, fundo amarelado, ponteiros um pouco desbotados, mas tudo funcionava.
Lá estavam o ponteirinho da gente estabelecer a hora do despertar, com seus numerozinhos e dentro de um círculo. O ponteirão dos minutos correndo atrás do ponteiro das horas e passando por cima deste de hora em hora.
Parece que marcar segundos não era tão importante.
Bem arrumadinho, colocadas as borboletas por trás, depois de tê-lo acondicionado bem na sua caixa; olhei bem para ele e o achei digno de voltar para a sala e só ficar no meu quarto nas minhas noites de insônia ou quando eu tivesse que me levantar mais cedo por um motivo qualquer.
Eu era ainda tão pequeno e de tão pouca idade que ainda não perdia sono por causa de paixões ou amores não correspondidos. Minhas insônias tinham origem mais em medos advindos de histórias medonhas que às vezes nos contavam ou por algum malfeito que iriam contar para meu pai, ou ainda porque tivesse morrido alguém da vizinhança.
O fato é que pretendi devolvê-lo ao seu lugar de honra, na sala, bem no meio da mesa de visitas. Ou, num cantinho perto de Nossa Senhora de Lourdes, a santa que nos protegia dia e noite e guardava minha mãe nas horas dos partos. Ou seja, quase anualmente.
Coloquei-o ao lado da santa.
Ali posto, ficou todo garboso fazendo tique e taque, mostrando as horas e de peito estufado. Ele todo orgulhoso de lá e eu de cá esperando os elogios, com os olhos brilhando de vaidade.
Antes de qualquer elogio ou reconhecimento...
A novidade!...
Meu pai entrou porta adentro trazendo uma grande caixa e nela um fulgurante relógio de parede, todo brilhoso, incrustado em madeira envernizada, com mostrador de um vidro tão límpido que parecia um cristal. Os números eram tão grandes e nítidos que podiam ser vistos de qualquer lugar da casa sem precisar se aproximar. O barulho era mais um cloc-cloc que um tic... tac... e era tão alto que ressoava pela casa toda.
Escolheu-se o melhor lugar da parede e o colocaram.
Ninguém nem notou meu redivivo despertador.
Até eu me entusiasmei com o novo relógio de parede, bonito, grande, cheio de energia e fulgor.
E como se não bastasse, o relojão de parede ainda tinha um pêndulo que parecia ser feito de ouro e luz, de tão reluzente que era. Além de bonito e brilhante ainda se dava ao luxo de balançar de um lado para o outro ao ritmo do cloc... -cloc... dia e noite.
Pela manhã, raios de sol conseguiam penetrar por vãozinhos das telhas e se refletirem no brilho do pêndulo que em seu movimento os projetava na parede defronte e nos hipnotizava pois luzes surgiam, se misturavam, sumiam, ressurgiam e se movimentavam como num cinema. No início ficávamos extasiados apreciando os efeitos especiais proporcionados pela novidade e o sol. A gente até se sentava olhando embevecidos e esquecidos das obrigações do dia a dia. O fenômeno durava até ali pelas nove horas quando então a posição do sol o interrompia para só voltar no dia seguinte pelas sete horas. Muitas vezes a voz de minha mãe tinha que nos trazer de volta à realidade para a continuidade da vida.
Com o passar dos dias fomos nos acostumando e o deixando lentamente de lado.
Era o cloc... -cloc...,; a beleza do relógio, o pêndulo maravilhoso e as luzes projetadas na parede pela manhã.
Meu despertador quase esquecido, ficava no seu canto com seu tic... tac.
O grande relógio de parede, além de barulhento não era despertador. Então, o antigo não estava totalmente dispensado não.
Alguém achou que era inadequado manter o despertador ao lado da santa. Falaram em heresia, desrespeito, feiura para justificar a conveniência de tirá-lo de lá.
Levei-o para meu quarto, mas logo lembraram que ele não era tão meu assim. Tinha que ficar onde todo mundo pudesse vê-lo e usar o despertador se quisesse.
Finquei um par de pregos na parede ao lado do garboso marcador de tempo e seu pêndulo e, uma noite quando todos estavam dormindo, dei um jeito de colocar o despertador ali, ao lado, sustentado pelos pregos premeditadamente fincados.
Bastou que o dia amanhecesse para que eu tivesse que tirá-lo de lá às pressas devido ao clamor popular das pessoas da casa e aos veementes brados de meu pai querendo saber quem foi o autor da arte. Como todo mundo soubesse de meus laços com o despertador, não foi necessária minha confissão. Recebi a intimação de desfazer o malfeito e, como meu pai já estivesse de saída para o trabalho, a reprimenda ficou para depois e acabou sendo esquecida. Uma semana ou mais depois, apareceram lá em casa uns ciganos querendo comprar retalhos de metais e bugigangas. O item bugigangas parecia incluir o nosso despertador que foi trazido e apresentado aos parentes de Melquíades. Um cigano imenso se adiantou e examinou longamente o relógio. Examinava e me olhava, eu com os olhos cheios de água e a testa franzida querendo chorar. O brutamontes não dava qualquer sinal de ter coração. Mas, quem vê cara não vê coração. Não hão de ver que o monstruoso cigano virou-se para meu pai e falou que não ia comprar e que aquela preciosidade estava ligada a alguém da família tão profundamente, que nunca deveria ser vendido. Minha mãe, sensível e bondosa, me entregou o relógio e disse que era para eu levar para meu quarto. Os ciganos acabaram encontrando alguma coisa que lhes interessava, deram um tacho de cobre na negociação, receberam algum dinheiro e foram embora. Minha mãe se apossou do cintilante tacho e foi guardá-ló na dispensa cheia dos mais doces planos para ele.
Aliviado e feliz corri para o meu quarto e coloquei antes o relógio perto da santa e expliquei na casa que tinha sido promessa.
Sendo promessa, todos acataram e desde então o relógio ficava com a santa durante o dia e comigo em meu quarto à noite. Quando alguém precisava de despertador, lá ia o meu relógio. O bonitão do cloc... cloc... fazia tudo para agradar e era o orgulho da casa, mas despertar e poder ficar com o dono, na beira da cama, lá isso não. Era grande e barulhento e não sabia despertar. Tive meu amigo tiquetaqueando perto de mim toda a minha infância e adolescência e só quando parti para o mundo nas lutas da vida, o deixei em casa com mil recomendações para o preservarem. Nunca voltei e hoje presto aqui essa homenagem ao meu inesquecível amigo tic.. tac... quase ainda podendo ouvi-lo na distância. 19/03/2021 - rilmar