segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Morte Anunciada

 

Morte  Anunciada

 

E ainda existem pessoas que creem firmemente que susto não mata.

Pois eu soube de um susto que causou a morte num fim de dia, logo ao pôr do sol.

Em casa, sem mais ter obrigações naquele dia, com a mente vazia como é do agrado do diabo, o homem pensava coisas agradáveis para ir dando asas ao tempo e rarefazendo o enfado.

Ao tentar dar asa ao tempo, acabou dando também asas à imaginação

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Jovem, bonita, louçã, cheinha nas áreas certas, convexa onde devia e graciosa, alegre, espontânea, risonha e ainda com umas fartas pitadas daquela inocência que encoraja o pecador. Essa a cartomante que de quando em vez aparecia na casa, ficava esperando a cliente, e estava sempre usando o celular e cantarolando músicas atuais.

Fim de tarde, solidão, mente vazia, ocasião e o coitado ali exposto e passível de seguir algum parágrafo da cartilha do capiroto.

Houve o momento, a distância mínima propícia, o encorajamento maldito, a sutileza do gesto, a indução sutil, despretensiosa; a aceitação anuída e disfarçada dela que animava sem dizer palavra alguma e sem se comprometer sequer levemente.

O fato é que num gesto banal, pretencioso, mas quase inocente; o homem deixou que a mão pousasse levemente nos cabelos dela e depois os penteasse por instantes abrindo os dedos e tocando-lhe a cabeça.

Um fluxo de emanações percorreu lhe a mão, evoluiu pelo braço e perpassou todo seu ser, como uma nuvem sutil de sensações agradáveis, irresistíveis e envolventes. Somos apenas ínfimas porções do universo. A natureza exerce em nós suas leis, tim-tim por tim-tim.

O que há de vir virá.

A mente, não só obedece como ainda mergulha numa torrente de ilusões que torna possível o impossível e realiza como se consequências não importassem.

Em seu peito o coração batia apressado num compasso ao qual ele já se habituara.

Vez por outra uma extrassístole surgia numa falha rápida e assintomática.

O batimento, agora apressado, diminuía as falhas, mas exigia mais das coronárias em duas das quais, stents já se faziam presentes e o tinham poupado em determinada ocasião em que dores no peito o levaram a um centro de cardiologia onde foi salvo e proibiram-lhe o cigarro e as fortes emoções.  O cigarro ficara no passado.

A emoção, embora agradável, já era tensa e máxima.

Então, de repente, a porta começa a se abrir e uma voz de longa convivência, conhecida e inconfundível, chama pelo seu nome.                                                    

Um raio que caísse do céu não teria efeito tão fulminante sobre ele.

Ainda com o gesto preso na mão, a expressão congelada no rosto, o olhar a um só tempo surpreso e luminoso; caiu ajoelhado e depois tombado com uma das mãos comprimindo o peito como se pudesse acudir o coração que parava impregnado de emoção e carente de oxigênio.

Ninguém chegou a perceber seu pecado.

 O julgamento ficou para um tribunal do outro mundo onde a natureza humana é analisada e entendida em toda sua complexidade e nuances

. Daí que os vereditos serão sempre surpreendentes para nós os seres vivos limitados e imperfeitos.

Com pouco tempo tudo se arranjou na casa.

A ausência dele rapidamente se desfez, vez que com o coração que tinha, suas funções na casa já eram poucas e de escassa importância.

Vivia causando preocupações e gastando quase toda sua renda com tratamentos intermináveis.

A renda virou pensão e equilíbrio financeiro na casa.                       A felicidade, pouco a pouco voltou ao lar.

Para ele também que foi para um lugar tão bom, se sentindo tão leve, lépido, sem medos, sem cansaço, tão pleno de alegria e ânimo, que só podia estar no céu; onde não há pecado em ser feliz, as felicidades têm tal natureza que não ferem ninguém, e os corações batem livremente sem temor de infartos ou paradas súbitas.

Foi, não sem antes passar por um júri de vozes.   

Tendo morrido como pena pelo pecado, considerou-se que já pagara por uma fraqueza mais social que natural e que seus atos bons por toda a vida pesavam muito mais que um ato impulsivo de um homem sem futuro e sem esperança, tentado pela mais tentadora das tentações, nas mais propícias condições de distância, luminosidade, temperatura, solidão e consentimento deduzido. Fora humano e nada mais.  Concluiu o júri, abrindo-lhe as portas do paraíso, onde entrou ainda um pouco incrédulo.                            

  Rilmar - 12 a 15 de agosto 2021