sábado, 4 de dezembro de 2021

Caminhos da Vida

 

                       Caminhos da Vida

                                                         

Evito de narrar certas histórias pelo medo de cair no descrédito dos raros leitores.

Porém não cabe a mim controlar os acontecimentos e, assim, o jeito é contar.                                                        Havia lá onde vivi a maior parte de minha vida; umas moças sabidas que namoravam homens de mais idade, velhuscos, pensando em se arrumarem, abiscoitarem alguma herança ou coisa assim.                                                                 

 Lá morava um certo fazendeiro, velho, quase noventenário, espoleta, pagodeiro, desses que não se enxergam e pensam que ainda são moços para terem certas pretensões e comportamentos.                                      

Não hão de ver que uma moça bem bonita, cheia de juventude e atrevimentos se inclinou para o lado dele, se insinuando com olhares, sorrisos, atenções, trejeitos e encorajamentos até que ele também se engraçou.                                                           

Acabaram tendo um caso.                                      

Meio secreto, um tanto às escondidas.

Porém rumoroso graças à ferocidade da língua do povo.                                                           Viveram um tempo não tão longo, mas de certa forma feliz.                                 

Ele, quase sem acreditar que no, tarde da vida, muito tarde; ainda arranjaria uma preciosidade daquela; charmosa e perfumada, alegre, bonita, tão cativante, capaz de despertar nele emoções há tanto tempo adormecidas e algumas que ele supunha até extintas.                                                      Ela, convivendo com um aquinhoado fazendeiro, cuidava de fazê-lo feliz e preenchia sua vida com carinhos, atenções e esmerado desvelo.              

Não só dava seu melhor empenho para o agradar como tratava de o fazer crer que a fazia feliz e excitada com suas atenções e carinhos.                                      

 A vida fluía e ela desempenhava, embora com sacrifícios, seu papel.

Abraçava- lhe o corpo senil, sentia seu cheiro vetusto, beijava a boca velhusca quando o beijo fosse inevitável.               

A pouca luz do quarto ajudava a aparentar contentamento e excitação. Pensando no futuro conseguia alguma felicidade.                                                               

Seguia a vida.                                             

Ela suportando, orando e esperando. 

Ele se deleitando mergulhado naquela atmosfera de benesses, rejuvenescido e contente.                                                              Por fim, certo dia a morte se compadeceu da pobre heroína, veio e o levou consigo para a eternidade.     

Partiu com um ar feliz e pimpão!...              

Choraram a perda por uns dias.           

Mais algum tempo de ar sombrio.                             

Começou então a surgirem herdeiros.            

 Apareceram dez filhos legítimos, uns tantos ilegítimos, mas comprovadamente filhos, três ex-esposas, duas concubinas, duas enteadas que acabaram se comprovando serem filhas disfarçadas de enteadas. Dívidas bancárias, negócios não terminados e mais alguns penduricalhos pendentes.                                          

O raio do velhinho que piscava miúdo e tinha olhos limpos como os de uma raposa, possuía uns 1500 bois na engorda, uns cem alqueires de terras cobertas de capim, um casarão muito antigo e sem grande valor.               

 Muito menos do que se pensava.          

Nada mais.                                                                    

Foi preciso contratar advogado dos bons e caro, esperar uma infinidade de tempo, se contentar com uma glebazinha de terra de nada e um punhado de boizecos.                                                 Tudo isso, dividido pelas mil e uma noites do tórrido romance vivido por ele, foi um baita negócio; para ela, no entanto, pelas mil e uma noites de sacrifícios e de vida doada na vã esperança de se tornar uma grande fazendeira, foi uma decepção sem tamanho e até hoje se pergunta quem foi que ludibriou quem.                              

Dizem que tempos depois ainda bonita e nem tão fazendeira, se casou e com o novo marido, moço probo, saudável e trabalhador; se dedicou com afinco ao labor, encheu de calos as mãos e de dores as costas.                              

Acabaram por juntar algum dinheiro e conseguiram comprar várias glebas, então inúteis, dos outros herdeiros, utilíssimas se reunidas; chegou à condição de micro proprietária tendo enfim, sua ilusão concretizada já no ocaso da vida...                         

 

 rilmar.                22/11/2021

 

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Lua que Beija o Rio


Lua que beija o rio,

Lua que beija o mar,

Leva para longe a saudade,

Antes dela me matar.


Cercada de escuridão,

Fazendo de prata o mar,

Leva embora a saudade,

Mas leva bem devagar, 

Alma vazia dói muito

Deixa a saudade ficar.


Vem clarear minha noite.

Caminhos de meu andar,

Ilumina minha mente,

Vem e me ensina a rimar.


Na escuridão da noite,

Parece nascer do mar,

Antes de subir nos céus

Tenta tocá-lo e beijar.


A água do mar tremula,

Refletindo a luz da lua,

E espumas luminosas,

Vêm banhar a praia nua.


Vai levando as saudades,

Porém sem nunca acabar,

Leva lento e de mansinho,

Ponha outra no lugar.


Por certo fica a saudade;

Da noite, do mar, da areia,

Desse lume cor de prata,

Da noite de lua cheia.


Rilmar – 27/10/2021



Um Olhar

Exaurido em minha capacidade de suportar as saudades, intentei analisá-las, classificá-las e separar por grupos, por espécies, intensidades, por tipos de sentimentos nelas contidos. Para enfim, eu como um analista, entender e assim poder, num sopro, desfazer, ao menos as mais doloridas.

Postas ali na mesa se assemelhavam em muitos pontos, mas bem observadas, não só com os olhos; aplicados sentimentos, coração, lembranças, alma; percebia-se nítidas diferenças.

Saudades de gentes várias indistintas e em grupos. Saudades de amigos, de colegas, de turmas sorrindo, conversando, contando experiências, saudando, festejando fazendo algazarras.

Saudades das vivências longas em família com presença de nossos pais, irmãos, irmãs, coisas da casa; do dia a dia, das alegrias vividas juntos em família. Imensas saudades de minha mãe.

Saudades de lugares, do dia a dia no trabalho, dos folguedos, dos jogos com minhas turmas.

Dos namoricos, dos flertes que nos enchiam de sonhos. Dos namoros cheios de inseguranças e ciúmes.

Encontrei, casualmente, a saudade de uns olhos cujas cores não esqueço; um castanho escuro irisado de tons claros brilhantes que diziam coisas à minha alma e eram muito mais um olhar que dois olhos. Tenho certeza de que emanações luminosas saem dos olhos e no trajeto se cruzam e nos alcançam já como um envolvimento inebriante e mágico; eis o que é o olhar.  Naquele olhar consentido e direcionado aos meus olhos, eu me embebia e sorvia sonhos, esperanças, promessas, ilusões imensas e indefinidas. Sentia que me envolvia e dominava, mas era de tal maneira irresistível, doce, bom e suave que eu me deixava envolver e nele mergulhar sem me importar quão profundo era nem até onde me levaria e o que de mim faria.

 Ela, angelical e sorridente, parece que também sentia o que meus olhos diziam, também se inebriava, então mergulhávamos juntos na imensidão daquela envolvência sem sabermos até onde iríamos.

E íamos, e íamos...

Mesmo depois de nos afastarmos, continuava sonhando, absorto, desligado do mundo, percebendo tudo com a alma e como que desprovido dos sentidos.

Esses olhares, esse repetido olhar, ainda hoje, assoma vez por outra, de dentro de mim, pois impregnou minha alma. Quando emerge ainda tem o poder de me levar de volta no tempo a ressentir as lembranças, as emoções, ela; o momento e o lugar. Até o perfume suave de uma dama da noite que florescia distante e o vento trazia dando mais encanto à noite; até esse sutil aroma retorna nessa saudade.

Há uma certa e boa concretude nas lembranças que o reviver esse olhar me traz.

No entanto, o tempo, esse impalpável componente da existência; com suas horas fugazes, dias, noites, meses e anos. Consome os momentos irreversivelmente e nesse consumir leva juntos os seres que fomos, esmaece a nossa capacidade de sentir a vida com as alegrias e encantos juvenis, com a pueril inexperiência onde cada detalhe do viver era algo novo e carregado de emoções nunca dantes sentida.

O Tempo, o mesmo tempo que nos amadureceu, nos afastou, interpondo-se entre nós, entre as emoções daqueles olhares e o nosso hoje. Mexeu em nossos corações, mudou nossos sorrisos, pôs neblina em nossos olhos impossibilitando-os de captar olhares em toda sua intensidade.

Há uma lembrança viva, buscada em certos momentos, mas o tempo leva tudo para tão intransponível distância que só consigo alcançar imagens fugidias, perfumes quase imperceptíveis, e um olhar lembrado que ainda consegue mexer comigo e causar uma dor funda e doce no coração ou na alma.

Ela linda e juvenil, a noite silenciosa de brisa fresca, a dama da noite exalando um perfume inebriante, o brilho de seu olhar, seu rosto maravilhoso e expressivo fazendo parte do encantamento e nós ali, tão jovens, descobrindo emoções tocados apenas pela magia do olhar.

Me perco nesse olhar e as demais e incontáveis lembranças postas na mesa para análise ali permanecem inertes e esmaecidas pois algumas lágrimas vertidas turvam mais a minha vista e expressam um embotamento da mente que, agora, não consegue mais ser racional e continuar a tarefa pretendida.

                                                                           28/09/2021  - rilmar

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Morte Anunciada

 

Morte  Anunciada

 

E ainda existem pessoas que creem firmemente que susto não mata.

Pois eu soube de um susto que causou a morte num fim de dia, logo ao pôr do sol.

Em casa, sem mais ter obrigações naquele dia, com a mente vazia como é do agrado do diabo, o homem pensava coisas agradáveis para ir dando asas ao tempo e rarefazendo o enfado.

Ao tentar dar asa ao tempo, acabou dando também asas à imaginação

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Jovem, bonita, louçã, cheinha nas áreas certas, convexa onde devia e graciosa, alegre, espontânea, risonha e ainda com umas fartas pitadas daquela inocência que encoraja o pecador. Essa a cartomante que de quando em vez aparecia na casa, ficava esperando a cliente, e estava sempre usando o celular e cantarolando músicas atuais.

Fim de tarde, solidão, mente vazia, ocasião e o coitado ali exposto e passível de seguir algum parágrafo da cartilha do capiroto.

Houve o momento, a distância mínima propícia, o encorajamento maldito, a sutileza do gesto, a indução sutil, despretensiosa; a aceitação anuída e disfarçada dela que animava sem dizer palavra alguma e sem se comprometer sequer levemente.

O fato é que num gesto banal, pretencioso, mas quase inocente; o homem deixou que a mão pousasse levemente nos cabelos dela e depois os penteasse por instantes abrindo os dedos e tocando-lhe a cabeça.

Um fluxo de emanações percorreu lhe a mão, evoluiu pelo braço e perpassou todo seu ser, como uma nuvem sutil de sensações agradáveis, irresistíveis e envolventes. Somos apenas ínfimas porções do universo. A natureza exerce em nós suas leis, tim-tim por tim-tim.

O que há de vir virá.

A mente, não só obedece como ainda mergulha numa torrente de ilusões que torna possível o impossível e realiza como se consequências não importassem.

Em seu peito o coração batia apressado num compasso ao qual ele já se habituara.

Vez por outra uma extrassístole surgia numa falha rápida e assintomática.

O batimento, agora apressado, diminuía as falhas, mas exigia mais das coronárias em duas das quais, stents já se faziam presentes e o tinham poupado em determinada ocasião em que dores no peito o levaram a um centro de cardiologia onde foi salvo e proibiram-lhe o cigarro e as fortes emoções.  O cigarro ficara no passado.

A emoção, embora agradável, já era tensa e máxima.

Então, de repente, a porta começa a se abrir e uma voz de longa convivência, conhecida e inconfundível, chama pelo seu nome.                                                    

Um raio que caísse do céu não teria efeito tão fulminante sobre ele.

Ainda com o gesto preso na mão, a expressão congelada no rosto, o olhar a um só tempo surpreso e luminoso; caiu ajoelhado e depois tombado com uma das mãos comprimindo o peito como se pudesse acudir o coração que parava impregnado de emoção e carente de oxigênio.

Ninguém chegou a perceber seu pecado.

 O julgamento ficou para um tribunal do outro mundo onde a natureza humana é analisada e entendida em toda sua complexidade e nuances

. Daí que os vereditos serão sempre surpreendentes para nós os seres vivos limitados e imperfeitos.

Com pouco tempo tudo se arranjou na casa.

A ausência dele rapidamente se desfez, vez que com o coração que tinha, suas funções na casa já eram poucas e de escassa importância.

Vivia causando preocupações e gastando quase toda sua renda com tratamentos intermináveis.

A renda virou pensão e equilíbrio financeiro na casa.                       A felicidade, pouco a pouco voltou ao lar.

Para ele também que foi para um lugar tão bom, se sentindo tão leve, lépido, sem medos, sem cansaço, tão pleno de alegria e ânimo, que só podia estar no céu; onde não há pecado em ser feliz, as felicidades têm tal natureza que não ferem ninguém, e os corações batem livremente sem temor de infartos ou paradas súbitas.

Foi, não sem antes passar por um júri de vozes.   

Tendo morrido como pena pelo pecado, considerou-se que já pagara por uma fraqueza mais social que natural e que seus atos bons por toda a vida pesavam muito mais que um ato impulsivo de um homem sem futuro e sem esperança, tentado pela mais tentadora das tentações, nas mais propícias condições de distância, luminosidade, temperatura, solidão e consentimento deduzido. Fora humano e nada mais.  Concluiu o júri, abrindo-lhe as portas do paraíso, onde entrou ainda um pouco incrédulo.                            

  Rilmar - 12 a 15 de agosto 2021

 

terça-feira, 29 de junho de 2021

Solidão

 

                   Solidão

                                                               Rilmar (1989)

 

Num cais distante perdido,

No ocaso da existência,

Sou aquele barco triste

Que ali jaz ignorado e só,

Na penumbra morta do fim de tarde.

Na imobilidade da água quieta.

 

A introspecção isola,

A inércia perpetua a distância,

O silêncio eterniza o tédio;

A solidão cresce como uma sombra,

 Lentamente apagando o lume da alma

 

Ninguém:

Nem pássaros,

Nem gente,

Nem os fantasmas;

 

Nada altera esse estado de só.

O lume é agora apenas uma pequena chama,

Imersa numa densa e imensa bruma.

Mas, ainda há uma chama.

Há ainda uma percepção que refere

Doçura pouca e sutilíssima

No isolamento, no silencio, na paz dessa quietude.

 

Deixai assim ficar o barco,

Que não o perturbe sequer,

Um olhar triste

Ou a onda provocada

Por uma lágrima vertida

E que ao cair estremeça

A quietude da água.

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segunda-feira, 7 de junho de 2021

Branca de Neve - Início

 

Branca de Neve 

 


Durante a concepção Branca de Neve já era destinada a ter uma beleza de contos de fadas.

Nevava!...

Pela transparência da janela a mãe, acariciando com leveza o abdome que já se destacava, olhava a neve enquanto bordava. Tocada pelo momento balbuciou o desejo de ter uma filha branca como a neve, de cabelos negros como o ébano da moldura da janela, os lábios róseos a ponto de lembrarem duas gotas de sangue que uma picada de agulha lhe arrancara do indicador; talvez por se permitir apreciar a neve ao tempo em bordava distraída.

 Uma fada benfazeja que por ali passava, ouviu e deu-se ao capricho de realizar esse seu desejo.

Passado algum tempo  Branca de Neve veio ao mundo com toda a beleza sonhada pela mãe e com uma meiguice e graça que Deus concedeu por acréscimo.

E saudável... Risonha... Adorável.

No entanto, a mãe sucumbiu dias depois do parto..

Partiu, não sem antes comprimir a filha contra o corpo, transmitindo-lhe infinito amor. Não sem antes amamentar a criança que sorveu defesas e vida do leite materno conseguido.

 Morreu a mãe muito jovem ainda.

O Rei, triste e solitário, cumpriu o período de luto com recolhimento e sombria tristeza.

Era, porém. escassa sua resiliência.

Assim, passado mais um tempo, enamorou-se e findou por casar-se com a mais linda mulher do reino.

 Linda, belíssima, mas muito vaidosa e, lá bem no íntimo, pérfida.

A nova rainha possuía um espelho mágico, com o qual conversava várias vezes ao dia e, no qual conferia sua beleza e sua posição de mais bela do reino.

Assim é que:

Criou Branca de Neve, com algum desvelo, até o momento em que percebeu nela sinais de uma beleza capaz de superar sobejamente sua própria beleza.

Isso era intolerável para a bela madrasta.



                                       Anos Depois

Espelho, espelho meu, haverá alguém no mundo mais bonita do que eu?
Era uma rainha muito bonita, sensual, perfumada, alinhando os cabelos, conferindo os dentes recém escovados, e fazendo beicinho enquanto dava uns retoques no batom.
O espelho olhou... olhou, refletiu incontáveis raios de luz de diferentes comprimentos de onda vindos da apetitosa rainha, depois meditou e refletiu longamente (agora reflexão mental).


- Hum!.... Pensou o polidíssimo e ovalado segmento de cristal.


Era um espelho do mais fino cristal, ovalado, perfeito em sua superfície e adornado em suas bordas por uma moldura de couro esmeradamente tratado e fina e artisticamente trabalhado com flores a arabescos de cuja criação e execução participaram artífices do mais alto nível, artistas os mais refinados e inspirados.


O espelho olhava, sem ser percebido no conteúdo de seu olhar. Olhava a bela rainha, a mulher maravilhosa postada à sua frente, como se cumprisse a sua modesta e repetitiva função de espelhar, de refletir fielmente a imagem dela, mas longe disso, o pobre espelho a devorava com os olhos.


Tão afeito estava a ela, a bela madona que todos os dias, várias vezes por dia; nos mais variados momentos; nas mais diversas condições vinha se postar diante dele sem desconfiar que cada imagem dela projetada no interior dele; ali ficava para sempre retida num mecanismo de memória sensorial ou imunológica leucocitária que ainda hoje não compreendemos bem.


- Espelho, espelho meu... haverá alguém no mundo mais bonita do que eu?... Insistia a rainha.


Às vezes a pergunta era feita por uma rainha toda produzida, com echarpe verde-musgo no pescoço, um vestido encantador e um casaco que destacava a beleza dela e do conjunto. E o espelho prontamente dizia: Não!.... Não há nem nunca haverá.
Como a sala de toalete ficava no quarto quase como uma extensão do banheiro; havia as vezes em que ela vinha apenas com uma felpuda e bela toalha envolvendo parcialmente o corpo escultural e de pele maravilhosa. O espelho quase perdia a voz ao ter que responder à pergunta de sempre. Porém respondia sem ter nunca que mentir:
Não há e nunca haverá!...


Enquanto isso... Não muito distante dali... Na floresta negra... Morando escondida entre respeitosos e simpáticos anões, vivia Branca de Neve que ia pouco a pouco deixando de ser criança e já era agora uma adolescente vivaz, lépida, formosa, louçã, com o mais encantador sorriso sempre presente nos lábios, os dentes tão brancos que chegavam a ser luminosos, a face de um rubor tão belo e juvenil que poderia se rivalizar com as mais belas romãs, com os lábios castos e atrevidos; róseos úmidos e inocentes.
Nenhuma beleza é tão bela quanto aquela que se desperta, quanto uma beleza que todo dia é mais bela. Quanto um conjunto maravilhoso que se aprimora a cada instante, continua se aprimorando incessantemente mesmo no momento em que está sendo analisado, comparado ou julgado.


Concebida pela primeira esposa do rei, seu pai, Branca de Neve tivera a morte encomendada por esta que se mirava no espelho em busca de afirmação. Lábios róseos, pele alva, cabelos e olhos negros e beleza angelical. Por isso Branca de Neve, por isso odiada pela madrasta que dera ordem para que fosse eliminada no meio da floresta. O carrasco se condoeu e não a matou. Abandonou-a na floresta dando-lhe uma última chance de viver. Branca de Neve sobreviveu.


- Espelho, espelho meu, haverá alguém no mundo mais bonita do que eu?...


O pobre espelho nunca tinha visto Branca de Neve mas pressentia, sabia por uma propriedade do mundo das imagens, que Branca de Neve estava vindo com tudo: encantadora, juvenil, meiga, inocente, correndo pela floresta, comendo frutos silvestres e sem agrotóxico, bebendo a mais pura água das nascentes, se banhando ao sol, dormindo do pôr ao nascer do astro rei, respirando o mais puro ar, vivendo entre  amigos e em contato com o frescor e os sons da natureza.


Branca de neve tinha todos os atributos do DNA da família e, portanto, sangue azul, pele alva, traços sutis e bem delineados, gestos delicados e encantadores, lábios rosados e mais, e mais... Branca de Neve tinha ainda tudo o mais que a natureza acrescenta aos seres que mantém com ela um contato saudável e longo.
O pobre espelho não sabia mentir. Balbuciou gaguejando numa última tentativa de não desagradar sua dona, sua musa.


Si.... si... sim...! No bosque, isto é, na Floresta Negra há uma petiza que desabrocha e está prestes... ou melhor, que já ocuparia hoje o podium da beleza aqui de nossa região.  Talvez por uns meros e insignificantes pontos. Não no meu coração!... Mas para o mundo sim!....


A rainha enfurecida, nem ouviu a frase: não no meu coração. Arremessou o pobre do espelho contra a parede que era de pedra polida e o espelho se fragmentou em incontáveis cacos que repetiam sem parar: sim, sim, sim... exasperando ainda mais a rainha.


Enfurecida e enlouquecida a rainha partiu para a floresta em busca de Branca de Neve para eliminá-la e, possivelmente, apagar todos os vestígios do crime.
Nem eliminou a branquela, nem os vestígios, pois o caso se tornou público e até hoje todo mundo sabe da história.

Em verdade, em verdade vos digo: A rainha enfurecida tentou estilhaçar o espelho que , sendo mágico, satisfez-lhe o primeiro ímpeto no intento  de acalmá-la; de conduzi-la a se recompor, a recuperar a razão.


A miríade de fragmentos não aconteceu realmente, não mais foi que uma ilusão para chocar a rainha e refazê-la em seu psicológico. Recobrada a dita razão, logo veio um profundo arrependimento pela perda do amigo, do fã ardoroso, do incentivador perene. 


O pranto quase veio aos olhos da bela rainha. Quis de volta o conselheiro, o mais famoso espelho de todos os tempos em todo o mundo.

 
O espelho então, mágico que era, voltou a brilhar no seu lugar de sempre refletindo as imagens, ora recatadas, ora adornadas apenas pela toalha que deslizando pelo corpo deixava à mostra, por partes, uma nudez que nunca era total, mas que com memória e imaginação acabava, como num quebra-cabeças, compondo-se e revelando o todo. Paciente e atento, ia cada vez mais colhendo imagens e se escravizando naquele amor algo platônico e, a um só tempo, real.


Enfim, ali estava o espelho.
Aqui estava a rainha e, num bosque não muito longe dali estava Branca de Neve, leve e solta, inculta e bela como a última flor do Lácio.


- Espelho, espelho meu, onde é mesmo que mora essa ninfeta tão maravilhosa?


-  Na Floresta Negra, minha rainha. 

Habita a morada de uns anõezinhos mineradores que lhe deram guarida naquela vez em um caçador deveria tê-la eliminado, mas a quase certeza de que ela não sobreviveria aos rigores e perigos da floresta, o levou a deixar que a má sorte cuidasse disso.


- E o coração que comi pensando ser o dela, será possível tão torpe farsa?


- Era de um cervo, um pobre animal sacrificado.

Maldito caçador, pensou a rainha que mesmo irada e decepcionada, não deixava de ser linda. Primeiro vou cuidar da branca como a neve, rubra nos lábios como uma pequena gota de sangue provocada por uma espetada de agulha e de cabelos negros como o ébano ou a asa da graúna.


Ainda que ele habitasse além muito além daquela serra que ainda azula no horizonte, num lugar tão distante que até o pensamento levasse algum tempo para atingir; ainda assim eu a alcançaria.

 Morando logo ali, na floresta Negra; não tardarei em tê-la ao alcance das mãos e de minha capacidade de envolvê-la.
Se bem pensou, melhor tratou de fazer.

Disfarçada de doce velhinha que andava pela floresta espalhando bondades populistas, nossa encantadora rainha acabou por chegar na casinha dos 7 anões, ou seja, de Branca de Neve.


Como quase ninguém usasse andar por aquelas plagas, tão logo se aproximou, Branca de Neve apareceu na janela, ainda um pouco despenteada já que mal acabara de levantar-se, e assim não estava com a beleza em todo o seu fulgor.

Hum... Pensou a rainha. Essa aí é que é a tal de mais bela que eu?

 Uma pequena dúvida perpassou seu cérebro.

Bem, mas eu vim aqui para fazer julgamentos ou para eliminar o inimigo?... Perguntou-se num balbucio.

Cumprimentou gentilmente, fez um gracejo, um elogio; foi ganhando a confiança da boboca da Branca de Neve, até que lhe ofereceu um belíssimo pente, digno daqueles cabelos negros, brilhantes e sedosos. Despediu-se e foi embora.

 Mal cerrou a janela e já Branca de Neve, em sua vaidade pueril, intentou pentear-se. O pente era envenenado, talvez fosse curare o poderoso veneno usado em zarabatanas de caçadores de macacos; o fato, é que tão logo tentou pentear-se e já caiu inerte sobre alguma coisa macia que evitou uma concussão ou alguma fratura.

 

Tudo indica que a capacidade de respirar ficou preservada pois, ao fim da tarde, quando os anões ali chegaram a encontraram caída e, logo que tiraram o tal pente de seus cabelos, ela já começou a melhorar e algum tempo depois já restabelecida, contou tudo a eles que então recomendaram-lhe ter todo cuidado com estranhos,  não convidar para entrar e nem aceitar presentes.


Contam que a rainha fez várias e ardilosas tentativas mais, com o mesmo intento: eliminar a concorrência.

Numa última e desesperada tentativa, talvez inspirada na história do paraíso, valeu-se de uma maçã envenenada e de uma lábia sibilina e sub-reptícia.
Envolveu completamente Branca de Neve com belos adjetivos, com verbos e advérbios bem colocados, com interjeições convincentes, com um substantivo atraente e fatal: uma maçã vermelho-dourada, irresistível e cuidadosamente envenenada.

Para ganhar completamente a confiança da púbere criatura, partiu a suculenta maçã ao meio e começou a comer uma metade, oferecendo a outra metade à inocente Branca que, com as glândulas salivares inundando lhe a boca, não ofereceu qualquer resistência. Tomou a sua metade, até com certa voracidade e mordeu um grande naco.
 Caiu, dessa vez, como morta.

A rainha zarpou-se e foi novamente conversar com o espelho que a encheu de certezas e elogios.

Chegando em casa, após extenuante dia de trabalho, os anões desesperaram-se e tentaram de tudo para trazer de volta à vida a mais linda criatura que já tinham visto.
Depois de vários e inúteis esforços, ventilando com um abanador, usando os mais poderosos e modernos aromatizantes, aspergindo lhe o rosto com agua fria, chamando-a pelo nome, mandando que piscasse etc. etc. Deram-se por vencidos.

 

No entanto perceberam que sua beleza se mantinha, havia uma perfusão adivinhada, uma insuspeitada oxigenação ainda que mínima.
Não tiveram coragem de enterrá-la com tão bela aparência, com tanta beleza preservada.

- Vamos conservá-la numa redoma de cristal no alto daquela colina, cercada de um jardim de lírios e rosas.

E assim fizeram.

O pior não aconteceu, porque logo apareceu um príncipe o qual vendo tão bela criatura naquela redoma, pediu que lhe a dessem para que a tivesse conservada em seu palácio com todo cuidado.
Os anões anuíram. Não sem antes promoverem um rápido conciliábulo entre eles mesmos.

No trajeto para o palácio, no caminho tinha uma pedra, uma providencial pedra no caminho provocou tão rude bacada que o corpo foi sacudido e um pedaço de maçã que se alojara na garganta de Branca de Neve, foi expelido e com as vias aéreas totalmente livres e livre também da ação do veneno, Branca de Neve recobrou a vida.

Totalmente apaixonado e, tendo lhe salvo a vida; o príncipe propôs casamento a Branca de Neve que aceitou emocionada.


O casamento deu-se tempos depois, com uma festa tão linda e grandiosa que ficou na história para sempre. Compareceu à festa, após a cerimônia religiosa, luterana ou católica, não está claro; gentes de toda a redondeza: os anões, o caçador que não matou, serviçais, o velho rei pai de Branca e a Rainha que assistiu comportadamente o matrimônio, despediu-se cumprimentando os noivos polidamente e se retirou denotando visível depressão e, por isso corre o boato de tenha se lançado em um precipício em busca da morte. 

Esse autor, de coração compreensivo, valorizador de mulheres pós trinta, pós quarenta... pós 50, pós n...; acha que a família acabou por se entender, houve um perdão abrangente e geral dos personagens (acordão) e todos viveram felizes para sempre.

quinta-feira, 25 de março de 2021

O Nosso Despertador

 

O Despertador
Tic-Tac... tic-tac... Tic...Tac...
Ouvi como sendo um SOS.
Jogaram nosso velho despertador fora, num monturo no fundo do quintal, mas o velho relógio era tão teimoso e tão valente, que continuou, ou voltou, a fazer tique tac de dentro do lixo.
Cheguei mais perto a ver se não era só uma ilusão minha.
O som ficou mais nítido, mais claro, melhor audível.
Tic tac... tic tac.
Bateu uma saudade, dó de deixar o velho relógio ali no lixo, emperrando cada vez mais e se desfazendo aos poucos.
Fui sentindo um grande aperto no coração.
Pode até que fosse um pouco de usura de minha parte.
Não cheguei a analisar isso.
Com mais dois ou três tic tacs, não me contive e peguei duas ferramentas de jardinagem, pequenas e pouco contundentes e comecei a afastar pouco a pouco o lixo. Era um lixo fofo, recente, composto mais por folhas mortas e capins arrastados com rastelo recentemente. Na faina exumatória, formigas assustadas surgiam de quando em vez, um ou outro cupim de tesourinha aberta e o resto era um pouco de terra e as folhas e capins
Limpa que limpa, afasta que afasta, fui indo lixo a dentro, até que senti que tocava a estrutura metálica do nosso despertador. Dali para frente, trabalhei com as mãos, com os dedos e, com muito jeito, acabei por libertá-lo totalmente do monturo.
Depois limpei mais dando umas pancadinhas leves com a mão, esfregando na roupa, passando um pano, assoprando daqui e dali, passando outro pano mais limpo e seco, arrisquei outras batidelas com as mãos, cheguei a usar um pouco de álcool, ou melhor um caneco de pinga, na remoção da sujeira e finalmente considerei satisfatória a limpeza.
Não era o bastante. O relógio teria que trabalhar e produzir.
Trabalho de relógio é fazer tic e tac e trrilimmm... trrilimmm. E ficar vigiando o tempo.
Produção de relógio é nos dar a hora certa e nos acordar de manhã cedo.
Como a noite já caísse, embrulhei bem o meu relógio. Agora era meu. Sempre quis ter um relógio para entrar dentro e entender esse milagre da mecânica. Meu relógio para deixar no meu quarto fazendo barulhinho de relógio e servindo de companhia.
No outro dia bem cedo, era um fim de semana, peguei o relógio, coloquei-o sobre um caixote, à guisa de mesa, e fui tratar de melhorá-lo. Tirei a tampa de trás e vi que por dentro estava preservado das sujeiras do monturo. Tinha alguma poeira, mas com infinita paciência, alguns cotonetes que peguei nos guardados de minha mãe, minha caneca de pinga onde, vez por outra ia molhando os cotonetes; fui limpando, limpando até me dar por satisfeito. Depois fui na máquina de costuras e tomei emprestado uma almotolia de óleo singer e andei pingando em vários pontos o bendito óleo desengripante.
É quase um milagre o que esse oleozinho faz.
Ficou muito bom. Se já conseguia trabalhar, um pouco claudicante, com a limpeza e umas torcidas na borboletinha de dar corda então, foi como se ressuscitasse. Voltou com tudo. Parecia novo no funcionamento da maquinária. Não me atrevi hora nenhuma a mexer nos mecanismos. Pareciam complicados demais.
Olhando pelo lado do mostrador, ainda era o nosso velho relógio com números em algarismo romano, fundo amarelado, ponteiros um pouco desbotados, mas tudo funcionava.
Lá estavam o ponteirinho da gente estabelecer a hora do despertar, com seus numerozinhos e dentro de um círculo. O ponteirão dos minutos correndo atrás do ponteiro das horas e passando por cima deste de hora em hora.
Parece que marcar segundos não era tão importante.
Bem arrumadinho, colocadas as borboletas por trás, depois de tê-lo acondicionado bem na sua caixa; olhei bem para ele e o achei digno de voltar para a sala e só ficar no meu quarto nas minhas noites de insônia ou quando eu tivesse que me levantar mais cedo por um motivo qualquer.
Eu era ainda tão pequeno e de tão pouca idade que ainda não perdia sono por causa de paixões ou amores não correspondidos. Minhas insônias tinham origem mais em medos advindos de histórias medonhas que às vezes nos contavam ou por algum malfeito que iriam contar para meu pai, ou ainda porque tivesse morrido alguém da vizinhança.
O fato é que pretendi devolvê-lo ao seu lugar de honra, na sala, bem no meio da mesa de visitas. Ou, num cantinho perto de Nossa Senhora de Lourdes, a santa que nos protegia dia e noite e guardava minha mãe nas horas dos partos. Ou seja, quase anualmente.
Coloquei-o ao lado da santa.
Ali posto, ficou todo garboso fazendo tique e taque, mostrando as horas e de peito estufado. Ele todo orgulhoso de lá e eu de cá esperando os elogios, com os olhos brilhando de vaidade.
Antes de qualquer elogio ou reconhecimento...
A novidade!...
Meu pai entrou porta adentro trazendo uma grande caixa e nela um fulgurante relógio de parede, todo brilhoso, incrustado em madeira envernizada, com mostrador de um vidro tão límpido que parecia um cristal. Os números eram tão grandes e nítidos que podiam ser vistos de qualquer lugar da casa sem precisar se aproximar. O barulho era mais um cloc-cloc que um tic... tac... e era tão alto que ressoava pela casa toda.
Escolheu-se o melhor lugar da parede e o colocaram.
Ninguém nem notou meu redivivo despertador.
Até eu me entusiasmei com o novo relógio de parede, bonito, grande, cheio de energia e fulgor.
E como se não bastasse, o relojão de parede ainda tinha um pêndulo que parecia ser feito de ouro e luz, de tão reluzente que era. Além de bonito e brilhante ainda se dava ao luxo de balançar de um lado para o outro ao ritmo do cloc... -cloc... dia e noite.
Pela manhã, raios de sol conseguiam penetrar por vãozinhos das telhas e se refletirem no brilho do pêndulo que em seu movimento os projetava na parede defronte e nos hipnotizava pois luzes surgiam, se misturavam, sumiam, ressurgiam e se movimentavam como num cinema. No início ficávamos extasiados apreciando os efeitos especiais proporcionados pela novidade e o sol. A gente até se sentava olhando embevecidos e esquecidos das obrigações do dia a dia. O fenômeno durava até ali pelas nove horas quando então a posição do sol o interrompia para só voltar no dia seguinte pelas sete horas. Muitas vezes a voz de minha mãe tinha que nos trazer de volta à realidade para a continuidade da vida.
Com o passar dos dias fomos nos acostumando e o deixando lentamente de lado.
Era o cloc... -cloc...,; a beleza do relógio, o pêndulo maravilhoso e as luzes projetadas na parede pela manhã.
Meu despertador quase esquecido, ficava no seu canto com seu tic... tac.
O grande relógio de parede, além de barulhento não era despertador. Então, o antigo não estava totalmente dispensado não.
Alguém achou que era inadequado manter o despertador ao lado da santa. Falaram em heresia, desrespeito, feiura para justificar a conveniência de tirá-lo de lá.
Levei-o para meu quarto, mas logo lembraram que ele não era tão meu assim. Tinha que ficar onde todo mundo pudesse vê-lo e usar o despertador se quisesse.
Finquei um par de pregos na parede ao lado do garboso marcador de tempo e seu pêndulo e, uma noite quando todos estavam dormindo, dei um jeito de colocar o despertador ali, ao lado, sustentado pelos pregos premeditadamente fincados.
Bastou que o dia amanhecesse para que eu tivesse que tirá-lo de lá às pressas devido ao clamor popular das pessoas da casa e aos veementes brados de meu pai querendo saber quem foi o autor da arte. Como todo mundo soubesse de meus laços com o despertador, não foi necessária minha confissão. Recebi a intimação de desfazer o malfeito e, como meu pai já estivesse de saída para o trabalho, a reprimenda ficou para depois e acabou sendo esquecida. Uma semana ou mais depois, apareceram lá em casa uns ciganos querendo comprar retalhos de metais e bugigangas. O item bugigangas parecia incluir o nosso despertador que foi trazido e apresentado aos parentes de Melquíades. Um cigano imenso se adiantou e examinou longamente o relógio. Examinava e me olhava, eu com os olhos cheios de água e a testa franzida querendo chorar. O brutamontes não dava qualquer sinal de ter coração. Mas, quem vê cara não vê coração. Não hão de ver que o monstruoso cigano virou-se para meu pai e falou que não ia comprar e que aquela preciosidade estava ligada a alguém da família tão profundamente, que nunca deveria ser vendido. Minha mãe, sensível e bondosa, me entregou o relógio e disse que era para eu levar para meu quarto. Os ciganos acabaram encontrando alguma coisa que lhes interessava, deram um tacho de cobre na negociação, receberam algum dinheiro e foram embora. Minha mãe se apossou do cintilante tacho e foi guardá-ló na dispensa cheia dos mais doces planos para ele.
Aliviado e feliz corri para o meu quarto e coloquei antes o relógio perto da santa e expliquei na casa que tinha sido promessa.
Sendo promessa, todos acataram e desde então o relógio ficava com a santa durante o dia e comigo em meu quarto à noite. Quando alguém precisava de despertador, lá ia o meu relógio. O bonitão do cloc... cloc... fazia tudo para agradar e era o orgulho da casa, mas despertar e poder ficar com o dono, na beira da cama, lá isso não. Era grande e barulhento e não sabia despertar. Tive meu amigo tiquetaqueando perto de mim toda a minha infância e adolescência e só quando parti para o mundo nas lutas da vida, o deixei em casa com mil recomendações para o preservarem. Nunca voltei e hoje presto aqui essa homenagem ao meu inesquecível amigo tic.. tac... quase ainda podendo ouvi-lo na distância. 19/03/2021 - rilmar
Laura Mesquita, Alexandre Gomes e outras 14 pessoas
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