sexta-feira, 31 de julho de 2020

Poema da Unicidade


20 de setembro de 2013 20:52
Poema da Unicidade

Dá tudo a mim, amor com sentimento;
Anda, faze-o, e, ao fazê-lo;
Aplica nisso o teu maior encanto,
Para que só de encanto
Seja o momento.

Quando digo tudo, digo amor e alma,
Pois quero que vivas em meu pensamento,
Nas nossas tristezas e nas alegrias;
Que sintamos nós, um mesmo sentimento.

Nessa homogênea unicidade,
Não temo o lento caminhar para o fim,
Nenhuma angústia pode me envolver,
Nem solidão, pois estás em mim.

Se, no entanto, em um longínquo dia,
For esse amor só uma lembrança,
Terá, talvez, sido por ter reluzido
Como só reluzem sonhos de crianças

Antes, porém que se apague,
A luz!...
Há de ter brilhado tanto e com tal fulgor,
Que todo meu ser, toda minha alma,
Terão se consumido
Nessa chama,
Nesse amor

Rilmar
(parafraseando Vinicius – em sala de aula - UniAna)

Uma Rosa ao Pé do Muro

Uma Rosa ao pé do Muro

Isso foi há muito tempo.
Era de manhã. Eu passava por um quintal cercado de muros
Junto ao pé de um dos muros vicejava uma pequena roseira.
Mais definhava que vicejava. 
Mas tinha algumas folhas verdes e emitia brotos ansiosos de vida.
Bem no meio daqueles ramos, erguendo-se mais que eles como que para se mostrar; uma rosa vermelha com tons escuros permeando o colorido. Uma Príncipe Negro, talvez.
Gotas de orvalho aqui e ali, nas pétalas aveludadas que além de nos cativar pela singela beleza ainda emanavam um perfume tão sutil e agradável que nos levava e nos curvar e aproximar a face da flor para melhor sentir o aroma.
Era eu ainda criança. Sabia pouco da vida. Sentia mais que sabia.
Ao aproximar meus olhos daquela flor, percebi espinhos no galho que a sustentava. Vi também formigas indo e vindo rápidas numa faina insana de ordenhar uns poucos pulgões que habitavam o cálice onde a flor se aninhava.
Meu amor pela flor foi imediato.
Não, guardá-la para mim; não, de arrancá-la de seu galho onde vicejava e encantava as gentes. Mas de protegê-la, de cortejá-la longamente, de revê-la muitas vezes, de saber que ela ali estaria radiante e bela para que todos a vissem e revissem. Para que seguisse perfumando o ar e encantando os olhos.
O velho muro atrás da roseira, roseira de uma única rosa, era branco amarelado e manchado de espaço em espaço, de grandes máculas irregulares e escuras semelhantes a nuvens. Na sua inserção na terra havia também aqui e acolá, nichos de musgos de um verde sombrio.
A criança, a rosa, o espinho, as formigas indo e vindo, os pulgões e os musgos.
Se alguém se detivesse para uma fotografia, ou capturasse aquela cena para um quadro, por certo guardaria uma imagem capaz de encantar plateias.
Ninguém se deteve.
 Só a criança.
Eu.
  Depois de algum tempo acomodei-me sentado em uma grande pedra que havia por perto e me detive alheio ao mundo e namorando a flor.
Quis eliminar alguns espinhos que achei não combinarem muito com  ela, também quis esmagar as formigas que parasitavam os parasitas da flor. Algum clamor da natureza me aconselhou a me deter pois também eu ali estava usufruindo o perfume, a beleza e a interação entre a terra, o sol, a magia de Deus e os seres  que em seu conjunto compunham a vida.
Deixei-me ficar ali por algum tempo distraído.
Quando já me levantava para ir embora, ainda veio um casal de borboletas voejando, se tocando e, vez por outra beijando a rosa. Duas borboletas amarelo ouro, refletindo luz, rebrilhando no bater das asas sob a luz do sol.
Pensativo, encantado me afastei em direção à minha casa. Saíra para comprar alguma coisa e já não me lembrava mais o que era.
Naquele mesmo dia, já à tardinha, ainda voltei com uma latinha de água e reguei a planta, e revi a rosa que estava mais bonita ainda e, parece que me aguardava.
Detive-me por uns momentos embevecido diante dela. Cheguei a dizer alguma coisa, mas ela se manteve muda, apenas exalando perfume e exibindo sua beleza. Se houve alguma resposta foi quando um derradeiro raio de sol pousando sobre suas pétalas a iluminou e, como num palco mágico, exuberou ainda mais seu encanto e beleza e impregnou-me ainda mais de sentimentos ao pensar que ela se exibia para mim. 
Como a penumbra do fim de dia já envolvesse tudo, tive que deixá-la e voltar ao lar.
À noite adveio uma tempestade de chuva grossa, relâmpagos imensos e ruidoso vento.
Felizmente eu dormia aconchegado à minha mãe e protegido.
Na manhã seguinte, preocupado, voltei lá. A pedra, o muro, a roseira lá estavam, porém, a minha rosa tinha ido embora. O mais certo é que tenha sido a tempestade, porém pode ser que algum enamorado a tenha colhido e presenteado uma musa e que então a flor estaria perfumando uma casa e enfeitando uma mesa, repousando em um algum vaso e deixando cair uma a uma, suas pétalas coloridas.
Talvez cumprisse apenas seu destino de rosa. 
Não serem eternas.
 Pouco mais que efêmeras é o que são.
Só restava ali, um caule vazio e a roseira tristonha com alguns brotos ainda mais viçosos e em busca de vida e com esta, com certeza nova rosa, mas nunca mais aquela que chamei de minha.
                                                                   Rilmar - 19/5/2019



quinta-feira, 23 de julho de 2020

PANDEMIA

PANDEMIA

Era um fim de dia, a luz do sol já não era tanta, não era ainda hora de a noite chegar, mas a brandura da luz do sol já permitia que a gente olhasse para o poente.
Olhando em direção ao horizonte fomos lentamente percebendo algo como se fosse uma discreta nuvem. Talvez de aves, andorinhas possivelmente.;
Só quando o fenômeno se aproximou mais é que notamos pelo silêncio, pelas formas dos que estavam à frente e pela sutileza dos movimentos, que não eram pássaros, nem morcegos, nem gafanhotos.
Impressionavam pela nuvem que formavam sendo capaz de desenhar um arco no horizonte.
Eram brancos, arredondados em sua porção anterior e se disfarçavam no restante dos corpos porque se sobrepunham em várias camadas, eram pequenos e assim se tornavam mais densos como se também obedecessem a alguma lei da nossa física.
Fantasmas, almas sem corpo foi o que lentamente se delineou até ser bastante nítido.
 Por se sobreporem em várias camadas e pela densidade somada, compunham uma nuvem capaz de arrefecer, ainda que levemente, a luminosidade que ainda restava no céu.
Vivíamos tempos de uma pandemia onde as pessoas morriam aos milhares, todos os dias, devido a alguma coisa tão pequena, inodora, invisível, silenciosa e sutil que nos parecia estarmos a mercê de alguma maldição ou castigo de Deus.
Em verdade um vírus somado à interpretação social e psicológica do ser humano.
Outra propriedade da maldição, além de adoecer e matar no mundo todo, era a indiferença que causava nas pessoas ainda não afetadas.
 Atarantada, a humanidade ignorava o mal.
 Quase não se viam os mortos já que morriam nos hospitais e eram sepultados sem contato com as famílias. Apenas se dava por falta de um ou de outro indivíduo e se ficava sabendo que partira.
As almas se desprendiam todos os dias em tal quantidade que, possivelmente, não apenas os hospitais ficavam superlotados, não só os crematórios, não só os cemitérios; mas os caminhos do céu, do purgatório e de qualquer outro destino das almas também se abarrotavam, com certeza.
Daí a profusão de fantasmas que devem ter se reunido em nuvens e perambulavam nos céus do mundo
E chegaram até ali naquele fim de tarde.
Um fantasma ocasional a gente sabia que existia.
Fantasmas em pequenos grupos eram relatados pelos notívagos contumazes e havia até comprovações.
Mas, uma nuvem de pequenos fantasmas surgida no horizonte e postada sobre a cidade, pairando, voejando e alternando posições.
Nunca tínhamos visto.
 Era inacreditável.
Havia muita coisa acontecendo nos mundos. A inversão do campo polar da terra, tempestades solares, mudanças de clima no planeta, ondas eletromagnéticas de toda ordem e cada vez mais, inconsequentemente produzidas, circundando o planeta e perpassando as mentes e os órgãos de todos os seres.  
Crateras imensas nas camadas de proteção do planeta.

O Céu era uma azáfama só. Desde a recepção onde as portas de entrada tiveram que ser abertas totalmente, tal como já acontecera na segunda guerra, tal era o número de almas que chegavam atônitas, confusas, arfantes ainda por terem vindo diretas de respiradores, além das que morreram de outras causas mas somavam-se à multidão das que vinham da pandemia. O sacrossanto pessoal do controle tinha sido triplicado e ainda tinha dificuldade de dar fluência ao grande número de recém-chegados. As instalações tinham que ser ampliadas rapidamente o que levava a improvisações, ao menos num primeiro momento. Tudo ia se resolvendo, mas demandava algum tempo e fazia com que almas e mais almas se mantivessem aqui no planeta terra, de um lado para outro enquanto aguardavam a vez de se erguerem em direção à morada eterna.
Também quem tinha outros destinos precisava que aguardar classificação e existência de vagas.
Tantos acontecimentos coexistiam com a humanidade que, pode ser que por isso, os fantasmas tão numerosos e desorientados puderam se tornar visíveis.
Nem acreditávamos no que víamos e nem é da natureza da mente humana visualizar essa outra dimensão onde as almas habitam.
Começou a crescer um medo em todo mundo.
Começamos a rezar olhando o para cima e apontando o fenômeno.
Com pouco tempo veio o padre local convocando desesperado, o povo para uma procissão de perdão, de livramento, de confissões de culpas, de pedidos a Deus, de sacrifícios. E, os que eram católicos foram se organizando em filas, vindos de todos os lados: das casas, dos bairros distantes, das vendas que iam se fechando, dos bares, da própria rua que estava apinhada de gentes temerosas, mas também curiosas. E foi se formando filas e mais filas numa grande procissão. Trouxeram paramentos às pressas, e andores, e mastros, e turíbulos com incensos e brasas inundando o ar de fumaça e cheiro, e aspersores de água benta, e rosários, e sinetas e até um púlpito portátil para o padre subir e distribuir ordens além de ir iniciando cânticos e rezas apropriadas para o momento e o evento.
Também os pastores conclamaram os seus fiéis e nossa cidade contava com pelo menos três denominações evangélicas.
 Se eram em número menor, o seu fervor soava caloroso, sonoro e cheio de uma fé capaz de remover montanhas, pelo que inspiravam a maior confiança em ser capaz de contribuir para que aquela inusitada nuvem de fantasmas fosse conduzida par perto de Deus e deixasse de nos assombrar,
Depois vieram as rezadeiras também fervorosas e prontas para invocar santos e mais santos em nosso socorro.
Vieram também os espiritualistas.
Vieram pessoas de outros povos com outras crenças e outras religiões.
Foi a maior e mais ecumênica reunião espontânea de credos e de crentes, a mais densa e fervorosa de que se tem notícia até hoje por lá. Todos oravam fervorosamente, e o padre conclamava seus fiéis a buscarem o altíssimo em suas preces e pensamentos.                                                                                            Então puderam ser vistos até com alguns detalhes.

As aparências variavam, mas a característica principal era serem pequenos, brancos e não parecerem querer nos incomodar. Talvez estivessem de passagem.
 Não se sabia.
Orávamos fervorosamente pedindo a Deus que os levasse.
A peste era a origem da profusão de fantasmas errantes que se organizava em bandos imensos, ordenados e sem outra motivação que não fosse aguardar sua vez de serem acolhidos no seu destino final. 
A grande peste era causada por seres mais invisíveis que os fantasmas; mais temíveis; tão infinitamente pequenos que seus campos magnéticos eram indetectáveis. Apenas os grandes laboratórios comprovavam a existência deles e até descreviam a forma, mas o povo não os via.
Para o povo os fantasmas eram mais concretos e, nesse instante podíamos vê-los.
 Porém, os fantasmas, exatamente os fantasmas eram a rubrica da existência da peste. Cada fantasma correspondia à perda de um ente querido.
Muitos da multidão já tinha sofrido uma ou mais perda sentida e lembrada. Vários tinha uma ou mais tristeza dentro de si acompanhada de temores de novas perdas e pela própria vida. No entanto, para a maioria, a peste despertava a curiosidade, era notícia, porém um estranho fenômeno psíquico os levava à negação ou à indiferença.
Aí começou o milagre da emanação em forma de um clarão que se ergueu a partir da multidão que orava e foi se elevando em direção à nuvem.
Na medida que a luminescência se aproximava, os seres que pairavam sobre a cidade foram se organizando numa grande formação circular e, assumindo a forma de um funil invertido, começaram a subir como um torvelinho, como se fosse um redemoinho indo em direção ao infinito. Porém de forma ordenada e de moderada velocidade.
Eram tantos que foi longo o tempo em que foram e foram subindo e indo embora. Caiu a noite e eles continuavam a entrar no torvelinho indo lentamente em direção ao seu destino. Como muitos de nós supunha ter alguém entre eles, desejávamos fervorosamente que o destino fosse os Reinos dos Céus, a eternidade celeste, Deus.
E eles continuavam a ir e ir e pela noite deve ter finalmente ido até o último deles.
Com o cair da noite, a multidão se desfez aos poucos com cada um tomando o rumo de seu lar.
 Na manhã seguinte um sol radiante iluminou o dia e as mentes. Ainda houve comentários, mas predominava uma postura meditativa e uma expressão de esperança e otimismo.
Pode ser que em várias partes do mundo tenha se repetido fenômenos semelhantes pois a pandemia se enfraqueceu, as vacinas chegaram a cada ser humano existente, efeitos manadas também se fizeram sentir; os vírus, de tanto se mutarem acabaram meio inertes e voltando a habitar somente os morcegos chineses.
Durante um longo tempo a humanidade se ocupou trabalhando arduamente, se recompondo, reorganizando, resgatando, repondo conhecimentos, refazendo, limpando, reestruturando o muito que foi destruído mesmo sem bombas.
O emocional demandou mais tempo.
Muita coisa era sem conserto.
Desde então cientistas do mundo inteiro passaram a se empenhar na preservação do ambiente invisível que nos cerca promovendo a limpeza do excesso de ondas e emanações que poluem o espaço atmosférico onde tudo e todos estamos mergulhados.
No entanto percebia-se claramente que os que aqui ficaram estavam tendo mais uma oportunidade.

21/07/2020    - rilmar


PANDEMIA

PANDEMIA
Era um fim de dia, a luz do sol já não era tanta, não era ainda hora de a noite chegar, mas a brandura da luz do sol já permitia que a gente olhasse para o poente.
Olhando em direção ao horizonte fomos lentamente percebendo algo como se fosse uma discreta nuvem. Talvez de aves, andorinhas possivelmente.;
Só quando o fenômeno se aproximou mais é que notamos pelo silêncio, pelas formas dos que estavam à frente e pela sutileza dos movimentos, que não eram pássaros, nem morcegos, nem gafanhotos.
Impressionavam pela nuvem que formavam sendo capaz de desenhar um arco no horizonte.
Eram brancos, arredondados em sua porção anterior e se disfarçavam no restante dos corpos porque se sobrepunham em várias camadas, eram pequenos e assim se tornavam mais densos como se também obedecessem a alguma lei da nossa física.
Fantasmas, almas sem corpo foi o que foi o que lentamente se delineou até ser bastante nítido.
Por se sobreporem em várias camadas e pela densidade somada, compunham uma nuvem capaz de arrefecer, ainda que levemente, a luminosidade que ainda restava no céu.
Vivíamos tempos de uma pandemia onde as pessoas morriam aos milhares, todos os dias, devido a alguma coisa tão pequena, inodora, invisível, silenciosa e sutil que nos parecia estarmos a mercê de alguma maldição ou castigo de Deus.
Em verdade um vírus somado à interpretação social e psicológica do ser humano.
Outra propriedade da maldição, além de adoecer e matar no mundo todo, era a indiferença que causava nas pessoas ainda não afetadas.
Atarantada, a humanidade ignorava o mal.
Quase não se viam os mortos já que morriam nos hospitais e eram sepultados sem contato com as famílias. Apenas se dava por falta de um ou de outro indivíduo e se ficava sabendo que partira.
As almas se desprendiam todos os dias em tal quantidade que, possivelmente, não apenas os hospitais ficavam superlotados, não só os crematórios, não só os cemitérios; mas os caminhos do céu, do purgatório e de qualquer outro destino das almas também se abarrotavam, com certeza.
Daí a profusão de fantasmas que devem ter se reunido em nuvens e perambulavam nos céus do mundo
E chegaram até ali naquele fim de tarde.
Um fantasma ocasional a gente sabia que existia. Fantasmas em pequenos grupos eram relatados pelos notívagos contumazes e havia até comprovações. Mas, uma nuvem de pequenos fantasmas surgida no horizonte e postada sobre a cidade, pairando, voejando e alternando posições.
Nunca tínhamos visto.
Era inacreditável.
Havia muita coisa acontecendo nos mundos. A inversão do campo polar da terra, tempestades solares, mudanças de clima na terra, ondas eletromagnéticas de toda ordem e cada vez mais, inconsequentemente produzidas, circundando o planeta e perpassando as mentes e os órgãos todos de todos os seres.
Crateras imensas nas camadas de proteção do planeta.
O Céu era uma azáfama só. Desde a recepção onde as portas de entrada tiveram que ser abertas totalmente, tal como já acontecera na segunda guerra, tal era o número de almas que chegavam atônitas, confusas, arfantes ainda por terem vindo diretas de respiradores, além das que morreram de outras causas mas somavam-se à multidão das que vinham da pandemia. O sacrossanto pessoal do controle tinha sido triplicado e ainda tinha dificuldade de dar fluência ao grande número de recém-chegados. As instalações tinham que ser ampliadas rapidamente o que levava a improvisações, ao menos num primeiro momento. Tudo ia se resolvendo, mas demandava algum tempo e fazia com que almas e mais almas se mantivessem aqui no planeta terra, de um lado para outro enquanto aguardavam a vez de se erguerem em direção à morada eterna.
Também quem tinha outros destinos precisava aguardar classificação e existência de vagas.
Tantos acontecimentos coexistiam com a humanidade e, pode ser que por isso, os fantasmas tão numerosos e desorientados puderam se tornar visíveis.
Nem acreditávamos no que víamos e nem é da natureza da mente humana visualizar essa outra dimensão onde as almas habitam.
Começou a crescer um medo em todo mundo.
Começamos a rezar olhando o para cima e apontando o fenômeno.
Com pouco tempo veio o padre local convocando, desesperado, o povo para uma procissão de perdão, de livramento, de confissões de culpas, de pedidos a Deus, de sacrifícios. E, os que eram católicos foram se organizando em filas, vindos de todos os lados: das casas, dos bairros distantes, da rua, das vendas que iam se fechando, dos bares, da própria rua que estava apinhada de gentes temerosas, mas também curiosas. E foi se formando filas e mais filas numa grande procissão. Trouxeram paramentos às pressas, e andores, e mastros, e turíbulos com incensos, e aspersores de água benta, e rosários, e sinetas e até um púlpito portátil para o padre subir e distribuir ordens além de ir iniciando cânticos e rezas apropriadas para o momento e o evento.
Também os pastores conclamaram os seus fiéis e nossa cidade contava com pelo menos três denominações evangélicas. Se eram em número menor, o seu fervor soava caloroso, sonoro e cheio de uma fé capaz de remover montanhas, pelo que inspiravam a maior confiança em ser capaz de contribuir para que aquela inusitada nuvem de fantasmas fosse conduzida para perto de Deus e deixasse de nos assombrar,
Depois vieram as rezadeiras também fervorosas e prontas para invocar santos e mais santos em nosso socorro.
Vieram também os espiritualistas. Vieram pessoas de outros povos com outras crenças e outras religiões.
Foi a maior e mais ecumênica reunião espontânea de credos e de crentes, a mais densa e fervorosa de que se tem notícia até hoje por lá. Todos oravam fervorosamente, e o padre conclamava seus fiéis a buscarem o altíssimo em suas preces e pensamentos. Então puderam ser vistos até com alguns detalhes.
As aparências variavam, mas a característica principal era serem pequenos, brancos e não parecerem querer nos incomodar. Talvez estivessem de passagem.
Não se sabia.
Orávamos fervorosamente pedindo a Deus que os levasse.
A peste era a origem da profusão de fantasmas errantes que se organizava em bandos imensos, ordenados e sem outra motivação que não fosse aguardar sua vez de serem acolhidos no seu destino final.
A grande peste era causada por seres mais invisíveis que os fantasmas; mais temíveis; tão infinitamente pequenos que seus campos magnéticos eram indetectáveis. Apenas os grandes laboratórios comprovavam a existência deles e até descreviam a forma, mas o povo não os via.
Para o povo os fantasmas eram mais concretos e, nesse instante podíamos vê-los.
Porém, os fantasmas, exatamente os fantasmas eram a rubrica da existência da peste. Cada fantasma correspondia à perda de um ente querido.
Muitos da multidão já tinha sofrido uma ou mais perda sentida e lembrada. Vários tinha uma ou mais tristeza dentro de si acompanhada de temores de novas perdas e pela própria vida. No entanto, para a maioria, a peste despertava a curiosidade, era notícia, porém um estranho fenômeno psíquico os levava à negação ou à indiferença.
Aí começou o milagre da emanação em forma de um clarão que se ergueu a partir da multidão que orava e foi se elevando em direção à nuvem.
Na medida em que a luminescência se aproximava, os seres que pairavam sobre a cidade foram se organizando numa grande formação circular e, assumindo a forma de um funil invertido, começaram a subir como um torvelinho, como se fosse um redemoinho indo em direção ao infinito. Porém de forma ordenada e de moderada velocidade.
Eram tantos que foi longo o tempo em que foram e foram subindo e indo embora. Caiu a noite e eles continuavam a entrar no torvelinho indo lentamente em direção ao seu destino. Como muitos de nós supunha ter alguém entre eles, desejávamos fervorosamente que o destino fosse os Reinos dos Céus, a eternidade celeste, Deus.
E eles continuavam a ir e ir e pela noite deve ter finalmente ido até o último deles.
Parece que aquele foi um sinal de Deus aos homens pois a partir daquela tarde começaram a ecoar notícias boas de surgimento de vacinas, de conscientização da humanidade não só em relação à pandemia em si, mas também em relação ao que se fazia e vinha destruindo todo o grande equilíbrio estabelecido pelo criador para a existência de todas as formas de vidas na terra, coexistindo em harmonia em sua interdependência indissolúvel. Talvez o recado fosse de que os organismos todos que cobrem o planeta fazem parte de um mesmo sistema capaz de suportar interferências e mudanças, mas com limites estabelecidos e muito sensíveis.
Com o cair da noite, a multidão se desfez aos poucos com cada um tomando o rumo de seu lar.
Na manhã seguinte um sol radiante iluminou o dia e as mentes. Ainda houve comentários, mas predominava uma postura meditativa e uma expressão de esperança e otimismo.
Pode ser que em várias partes do mundo tenha se repetido fenômenos semelhantes pois a pandemia se enfraqueceu, as vacinas chegaram a cada ser humano existente, efeitos manadas também se fizeram sentir; os vírus, de tanto se mutarem acabaram meio inertes e voltando murchinhos para morcegos chineses.
Durante um longo tempo a humanidade se ocupou trabalhando arduamente, se recompondo, reorganizando, repondo conhecimentos, refazendo, limpando, reestruturando o muito que foi destruído mesmo sem bombas. O emocional demandou mais tempo. Muita coisa era sem conserto, tal como nos pós guerras.
Desde então cientistas do mundo inteiro passaram a se empenhar na preservação do ambiente invisível que nos cerca promovendo a limpeza do excesso de ondas e emanações que poluem o espaço atmosférico onde tudo e todos estamos mergulhados.
No entanto percebia-se claramente que os que aqui ficaram estavam tendo mais uma oportunidade.
21/07/2020 - Rilmar 

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Blusa Amarela

Blusa Amarela


Blusa Amarela (os simples herdarão o mundo)



                                                     Com meu cavalo cansado,
                                                    Quando a tarde já morria,
                                                    Passei na porta da casa,
                                                    De quem, eu tanto queria.



Num arame no quintal,
Uma lembrança singela,
Um mimo que ela, vestindo,
Ficava ainda mais bela

                                                    Um vento sutil, batendo,
                                                    Balançava a blusa dela,
                                                   Por desventura, a mesma brisa,
                                                   Cerrou de leve a janela.

Com uma dor funda no peito,
Uma mágoa dolorida
Fui me afastando sem ver
A mulher da minha vida

                                                  Só cumpria a minha sina,
                                                 A vida me fez assim,
                                                O destino e a viola,
                                                Tiraram ela de mim.

Com a esperança da paixão,
Ainda olhei para a janela,
Tudo que vi foi o vento
Balançando a blusa dela.


                                                   O vento ainda machucou,
                                                  Trazendo a fragrância dela,
                                                  Num restinho de perfume
                                                  Da blusinha amarela
Doce e infinita tristeza,
Um profundo sentimento,
Tão sutilmente trazidos,
 Pela leveza do vento.

                     Me afastando lentamente,
                     Eu não vi, mas pressenti,
                     Num vãozinho da janela,
                      Ela... olhando p'ra mim.

Aquele olhar pressentido,
Aguçou meu pensamento,
Segui tristonho pela noite,
 No frio daquele vento.
                                               
  E pelo mundo vagando,
Os meus caminhos eu sigo,
As lembranças sempre voltam,
Ela está sempre comigo.



 Rilmar - 2014