Um Médico no INFERNO
Nunca
entendeu por que é que foi parar no inferno.
Tinha qualquer coisa de Macunaima dentro de
si
Pecou muito:
luxúria e sagacidade, sempre malandro, esperto, desregrado.
Honesto com
tudo, menos com horários. Tinha compromissos de escravo, ambição de usurário e
pensamento de liberal. Por isso mesmo tinha tantos empregos quantos lhe
oferecessem, economizava o tempo encurtando horários e intensificando a pressa
no atendimento; o pensamento liberal o fazia julgar que dava sempre mais do que
recebia.
Sem ter dó
de ninguém, não chegava a ser mau.
Bem
intencionado.
Se percebia
normal.
De boas
intenções o inferno está cheio.
Por isso ou
por aquilo, mal acabou de morrer e já estava chegando no inferno.
Médico que
era, foi prontamente aproveitado.
------- X -------
Os pacientes
entravam numa longa fila de intermináveis orientações e triagens.
Orientações
ao cinco primeiros: Jejum por três dias
e volta ao serviço para curativos.
- É com
anestesia, Doutor?
- Não se
preocupe, é surpresa.... Você vai adorar sair do jejum.
Outros
cinco: Centro Cirúrgico agora para procedimentos e limpeza em lesões profundas.
Mas,
Doutor!... Não estamos em jejum...
- Estamos
com um método novo. As escovas de aço, o macrótomo semi-rombo e a cama
imobilizante do Doutor Broiler, além dos curarizantes e das paredes com
tratamento anti ruídos.
Dispensam
anestesia.
Os
seis últimos: - (por coincidência os que estavam piores) - Direto para a
UTI!...
Vão
ser super cuidados. Ah! Se vão.
Na
UTI os pacientes sofriam muito, mas não morria ninguém.
Todo
mundo já tinha morrido uma vez.
Os
médicos trabalhavam para morrer, mas ninguém morria.
O
médico puncionava uma subclávia, passava fio guia, dilatador, cateter; aí descobria
que não tinha bomba de infusão, que o soro não estava com o equipo, que a
Técnica de Enfermagem foi ao banheiro.
Meia hora depois, depois de uma espera dos
diabos, de uma luta infernal... bem, a veia estava puncionada, o cateter fixado,
o soro estava pingando, mas o paciente se extubou.
-
Pelo amor de Deus, sedem o paciente! Berrou o médico.
Ao
pronunciar o nome de Deus, foi repreendido e avisado do que na próxima vez iria
trocar de lugar com o paciente.
O
doutor amarelou, suou frio, tremeu e se desculpou morrendo de medo.
Às vezes se apavorava, se chateava, perdia a
paciência; quando no meio da noite um paciente se extubava e havia ainda mais
um dúzia de pacientes intubados, puncionados, com sondas obstruídas, agitados e
querendo arrancar tudo que é tubo, só para torrar o saco da equipe.
No
inferno não tem moleza.
No
entanto, lá acontecem, pelo menos algumas vantagens que beneficiam a equipe: Ninguém morre; todo mundo está ali para
sofrer; ninguém dorme; todo mundo sai de coma com uns bons beliscões (estímulos
dolorosos).
Troca
de medicamentos é comum e sempre com muita confusão.
Uma
hora sem conseguir enfiar um tudo na traquéia: Normal, o paciente aguenta.
O
monitor pisca, apaga, acende, dispara alarme, pula na mesinha; por qualquer
coisa, emburra e não exibe parâmetros essenciais como SPO2, PAM, traçado de ECG.
O
respirador enguiça, dispara, faz ruídos estranhos emite mensagens nem sempre
compreensíveis e, de vez em quando, funciona um pouquinho, só para manter vivo
o sofredor.
As
bombas de infusão criam um caso atrás do outro e sempre disparando alarmes.
Soros sobem pelas mangueirinhas e enchem os frascos. Sangue para de pingar.
Plasmas congelam nos frascos; albuminas espumam dentro dos frasquinhos e teimam em não correr.
Pacientes
esquentam e tremem de febre com reações pirogênicas pelo sangue ou plasma recebidos.
Os
colaboradores correm de um lado para o outro atônitos, estressados, apavorados.
Tudo,
de preferência nas madrugadas para que a noite seja realmente infernal.
-
Porra, exclamou nosso doutor, zona por zona, é melhor ir para o quarto ver
sessão coruja ou filme de sacanagem que no inferno devem ser dos mais quentes. (talvez,
por esses hábitos tenha ido para o inferno).
No
quarto; televisor desligado, os controles sumiram e o canal a cabo foi cortado.
A cama está úmida e com cheiro de xixi, o cheiro de amônia chega a arder no
nariz, a porta do banheiro travou, a descarga está uma merda.
A janela não abre.
O
calor, sempre aquele próprio do local: Infernal!...
Muriçocas
cruzam o ar fazendo ziiuum no ouvido, um motor de compressor faz os tímpanos tremerem,
uma insônia eivada de pensamentos ruins que se avolumam com o fechar dos olhos.
Um
inferno infernal; não dá!...
O
melhor voltar para a UTI, mergulhar no
serviço, nos apertos, nos apuros, nos sustos e ficar firme até o dia amanhecer
e a jornada terminar.
Plantão
no inferno.
Será
que o plantonista substituidor vem? Vai
se atrasar? Se não houver um atraso dos
diabos, é porque o plantão não é dos infernos.
Pode ser até que nem venha.
Num
certo momento sentiu que poderia ir embora.
Tentou.
Antes
de sair do hospital foi informado dos muitos leitos sem visita na ala
psiquiátrica.
Era
com ele.
Logo
ele que quase nada sabia de psiquiatria, dos protocolos e drogas empregadas em
tais tratamentos.
Ah!
Arrependimento de não ter escolhido
passar pela ala de psiquiatria no tempo de internato.
A
grande tortura do médico é não saber. Não saber fazer; não saber se há o que
fazer; não entender os mecanismos das doenças, da medicação, dos efeitos
colaterais.
Torturava-o
a culpa dos fracassos; do êxito apenas parcial e, mesmo nas vitórias, na casual
vitória, conseguia perceber que beirou o erro e que o paciente mais se salva de
que é salvo.
Ainda
mais! Sabia que apenas aplicou conhecimentos e descobertas que não eram seus,
que ele mesmo nunca descobriu nada.
Porém,
nas falhas, no erro, no fracasso; vivia o inferno da consciência de que não
estava à altura da magnitude dos encargos que lhe foram confiados. Da carga
posta em seus ombros e que por uma questão de sobrevivência, aceitou,
resignou-se.
Isso tudo, lá na morada do sagaz e impiedoso
tinhoso...
Num
sanatório infernal (e os sanatórios geralmente já o são), sem DEF, sem Google,
sem internet, sem colegas para uma troca de ideias; e uma infinidade de loucos
sofrendo, fingindo, manipulando, gritando, gemendo pungentemente. Uns se agitando
nos leitos, outros ficando imóveis, sem falar, não comem, ou mantem um olhar
parado, de repente piscam os olhos e pedem socorro com movimentos oculares.
Nada
fez... Ou, pouco fez: - Diazepam para todo mundo! Gritou.
Ou
seria Haldol?
Saiu
com a dúvida irrespondida a torturá-lo.
Sua
passagem por ali prestava-se apenas a esse massacre pela ignorância diante da
necessidade premente de fazer alguma coisa e não ser capaz de nada.
Restavam
ainda as torturas de dar explicações para familiares sempre insatisfeitos e de
julgamento inquisitório e desconfiado.
O
mais humilhante seria descobrir, mais tarde, que as rotinas e percepções dali eram
de domínio até do mais simples serviçal.
Enfim
o plantão acabou de verdade e pôde ir em busca de uma casa vazia onde uma cama
dura, um travesseiro encardido, num quarto sombrio e frio o esperavam.
Ao
lado da cama, uma moringa vazia, um espiral apagado e úmido e um telefone com
uma irritante luzinha piscando para lembrar que poderia tocar a qualquer
momento.
E
ai dele, se sentisse alívio ou prazer em poder se isolar no quartinho onde
esporos de mofo, aos milhões, pairavam no ar à espera de vias respiratórias e
conjuntivas sensíveis.
Até
quando ficará ali... Sempre e mais uns dias.
Sairá algum dia? - NUNCA... nunca... e nunc...
Rilmar
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