- III -
-- PRONTO SOCORRO ----
(Um médico,
finalmente no céu)
Bem dormido, refeito em suas emoções e sentimentos, experimentava uma alegria
tão boa, tão plena, tão calma como nunca experimentara antes e nem sequer
imaginara pudesse haver tão envolvente estado de alma.
Foi ao café
e percebia em si umas mudanças. Emanava afeição. Era também receptivamente
aceito e querido por todos. Sentia isso nos olhos, nos sorrisos, nas expressões
faciais.
Tinha tempo.
Sendo
infinito, o tempo ali nem era considerado ou sentido. O ter tempo não causava
nenhum enfado. Pelo contrário contribuía para aquele estado de alma que sentia.
Cumprimentou todo mundo com alegria e eram muitos os que tomavam café em
algumas mesas distribuídas pelo ambiente.
Em cada um
que abraçava reconhecia um amigo de velhos tempos, um colega de turmas desde o
primário, ginasial, científico, faculdade, residência, plantões. Também as pessoas
que de maneiras mais simples, até despercebidas fizeram parte de sua curta existência
aqui na Terra, muitas já estavam lá e o abraçavam alegres, simpáticas, espontâneas.
Os abraços
transmitiam mil coisas boas. Eram aconchegos acolhedores. Eram afeto terno,
fraterno, transmitindo um bem querer e uma fraternidade quase esquecida entre
nós.
Os
padecimentos sofridos no inferno serviram para aflorar-lhe a sensibilidade
Um novo
sentir e receptividade, aceitação e afeto tão à flor da pele e que ele, ao
mesmo tempo recebia e emanava.
Durante a vida, fora imperfeito em dar os
afetos que buscara.
Agora ali
estava experimentando esse ambiente novo e surpreendente momento a momento.
Depois do
café; novamente para o hospital; seu mundo, seu reino, seu ambiente.
Hoje o
esperava um Plantão.
Plantão é um
emaranhado de apertos, sucessos, desafios glórias, derrotas cansaço e muitos
sustos.
DEUS – será
um capítulo a parte
------- XXX ------
Vamos aos
plantões que o doutor já está atrasado.
Também os
plantonistas têm acesso próprio ao colossal Hospital. Entram, apanham
vestimentas apropriadas para a atuação no plantão, vão ao vestiário, se trocam
e saem de lá bem à vontade dentro do grosso blusão que tem grandes bolsos na frente
e tamanhos mais ou menos padronizados, de forma tal que um dos três tamanhos
existentes vista bem pessoas magras, gordas, altas ou baixas.
Como há um grande orgulho em merecer vestir
aquelas roupas, todo mundo se sente bem, bonito e sorridente dentro da
indumentária.
Ora!...
Direis; e tem pronto-socorro no céu?
Bem, a
impressão que tenho é que se tratasse de um tipo de hospital regional.
Entre o
inferno e o céu, podem talvez existir variadas instâncias distribuídas vertical
e lateralmente.
Assim o
universo transcendental deve ter muitas moradas e por elas passam, estagiam,
habitam; uma infinidade de almas que vão lentamente se adaptando, quase diria
se reeducando, mas o termo é muito cheio de conotações negativas.
Enfim, é possível que nem todo mundo possa se
ver, de repente, no Paraíso sem causar perturbações devido aos modos, costumes,
egoísmos, paixões, eivados de defeitos levados daqui desse nosso mundo.
Tintim por
tintim, com detalhes, eu não sei. Só escrevo o que me foi passado.
O fato é que
os saguões amplos e confortáveis onde pacientes em geral esperavam estavam
cheios.
Havia alas
separando grupos de patologias, especialidades e os graus de urgências.
Não estava
só, no atendimento.
Não o
angustiava o número de pessoas que teriam que atender.
Os pacientes
esperavam com naturalidade. Aceitavam a seleção por urgência e tinham algum
tipo de atenção já ali onde esperavam. Eram avaliados, informados, assistidos com
palavras, água, cafezinho, música, orientações, alívio de dores; quando possível.
Iniciados os
atendimentos, no consultório e nos boxes de urgência chegava de tudo. A
realização de médico para ele era essa diversidade de desafios para os quais se
preparara a vida inteira.
Estava ali
como generalista. Poderia ser chamado a
ajudar colegas, ser ajudado e até especificamente assumir uma ou outra cirurgia
de urgência ou emergência. Porém uma equipe de retaguarda devia cuidar das
ações que demandassem um longo tempo. A ele caberia dar os primeiros passos
diagnósticos, estancar sangramentos, fazer todos os procedimentos iniciais de
emergência, tratamentos clínicos urgentes, estabilizar e encaminhar os casos de
especialidades ou resolutividade mais prolongada.
Antes de ir para o
consultório passou pelos boxes viu dois pacientes estabilizados e dormindo, no
mais eram macas vazias, arrumadas esperando pacientes. Cumprimentou o pessoal,
em sua maioria jovens moças, exercendo a função de Técnicas de Enfermagem.
Mal se sentou na
cadeira do consultório e já foi entrando um jacaré de pronto socorro.
Antigo; sobejamente
conhecido de todos: dos médicos, enfermagem, porteiro, segurança, do pessoal da
farmácia, pessoal da limpeza, motoristas e até de outros jacarés.
Jacarés em PS são
pessoas, tipos, profundamente adaptados que costumam usar o pronto socorro como
se fosse parte de suas propriedades.
Usam quando bem
entendem.
São espertos,
manipuladores, sabem muito bem o que querem e como conseguir.
Quer um soro na
veia? Vai ao PS com uma boa história e consegue.
Voltaren injetável?
Vai com história de dor nas costas, gemendo e claudicando, e fazendo caretas e
pronto: vai um Diclofenaco IM mais uma Dipirona EV.
Aminofilina no soro
mais um tubinho de O2 no nariz? Tendo a
patologia crônica, é só deixar descompensar e comparecer no horário daquele
médico bonzinho que dá tapinha de camaradagem nas costas, não enche o saco
perguntando pelo cigarro nem pelo uso dos remédios; chama a Téc. de Enfermagem e
manda instalar tudo: soro, O2, Aminofilina e até a pitadinha de corticoide de
que o jacaré tanto gosta. Se não puser ele pergunta: Não vai pôr o corticoide?
Tem o jacaré da
ressaca desidratado e trêmulo, do pitiatismo, da taquiarritmia pós alcoólica,
do atestado por não ter ido ao trabalho, da receitinha azul para comprar
controlados, os pitiáticos que chegam desacordados com contraturas na face e
piscando miúdo, desesperados e apavorando a família. Mobilizam para si todas as
atenções e o atendimento; mas uma característica é que todos ali do PS já os
conhecem já que de dias em dias, comparecem ao serviço.
Discutir com eles
é inútil. Argumentam, gemem e colocam o público contra o serviço e o médico.
O importante é que
os jacarés têm macetes para entrar na fila de espera em posição privilegiada,
têm ótimas histórias para dirigir o raciocínio dos médicos, são amigos de muita
gente do PS, conseguem o tratamento quando bem querem, dormem a noite toda no PS,
ou melhoram de repente e vão de alta à hora em que bem lhes aprouver.
Os da receitinha azul de controlados, com
esses você pode discutir um pouco e depois ceder, ou pode ceder de pronto e continuar
trabalhando. Tem os que quase tiveram infarto uma certa vez e querem um ECG.
Se não fizermos o ECG, com certeza o infarto
virá.
Os histéricos mormente são urgentes e
repetitivos e por isso jacarés.
Namorados que levaram um fora, namoradas que
se sentem rejeitadas, mulheres cujos maridos só chegam bêbados e nas
madrugadas, jovens que saíram mal no vestibular, mães preocupadas com filhos
que não dão notícia, endividados, abandonados, traídos, etc., etc.
Às vezes é melhor
um jacaré que uma outra emergência.
No mais das vezes a
emergência traz mais satisfação, mormente quando logramos êxito.
Porém os Jacarés
podem nos trazer surpresas quando paramos para ouvi-los e arrependimentos, geralmente,
pelo que deixamos de fazer.
Sempre temos uma
solução.
Normalmente os
tratamos com respeito e até com solidariedade e afetividade pois sofrem dores da
alma ou são carentes e percebem que o melhor tratamento está ali e vão buscá-lo
a seu modo e da maneira que podem.
Talvez estejam ali
dando um grito desesperados pois nem têm mais ânimo ou coragem de confessar o
que lhes vai por dentro e os consomem.
Jacaré e Pronto Socorros
estarão sempre ligados. Paciência, no céu não falta.
Um médico de seu
porte e tão altamente preparado, submetido ao cotidiano de um PS. É algo como
colocar um general entre infantes combatendo em batalha campal.
Porém nosso Linneu,
o grande médico, é capaz de se adaptar às mais diferentes situações, capaz de
fazer uma leitura do ser humano e entender o que lhe vai por dentro e assim
lidar com os mais importantes personagens da sociedade sem perder a capacidade
de auscultar o simples e entender suas razões e seu sofrer, seus caminhos
escolhidos mais por ser premido que por livre escolha.
Daí foram chegando
convulsões, acidentes ofídicos, placenta retida, partos urgentes porque já quase
expulsivos, cortes, febres, desidratações... Tudo dentro do dia a dia dos PS.
Estranhamente, nenhum auto envenenamento.
Pronto Socorro é
uma área de rotina, de aprendizado, mas também da rapidez de raciocínio, da
capacidade de reativar conhecimentos até dos primeiros anos da faculdade de
medicina. Estalo, conhecimentos, reflexo, destemor, ação, paciência, vigor
físico, psíquico e mental. Tudo isso ali
é necessário.
É um ambiente de realização
e afirmação do médico. Talvez, por isso exista no céu.
Não ficou no PS até
o fim do plantão. Com poucas horas chamaram pelo seu nome no alto falante, o
som era difuso e nítido, vinha de todos os lados, mas com uma suavidade que nem
assustava quem era chamado nem incomodava ninguém.
Deslocado para uma
outra sessão, afasta-se dando recomendações, mas sem perder a alegria e a
sensação de prazer em ser útil e o orgulho de estar sendo requerido.
Pré-fim 05/2/2021
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