UMA
ACOLHEDORA TRIBO
Tornei-me hemofílico por capricho dos
deuses!
Não herdei
hemofilia de nenhum antecedente meu não. Aliás, devo esclarecer que nunca
herdei nada de ninguém. O pouco que tenho foi batalhado, esperado, planejado,
adquirido com muito suor e sacrifícios. São sobras do que produzi sofridamente,
não consumi nem me tomaram de alguma forma.
Sendo a hemofilia uma doença hereditária, e
eu, como bem já afirmei, não a tendo herdado, como foi então que de repente,
num friccionar da gengiva com um palito português de boa marca eu me descobri
hemofílico?
Bem só pode ser capricho dos deuses ou
efeito de alguma poeirazinha rica em Urânio enriquecido que abriu as asas sobre
mim.
Ah!.... A liberdade de contaminarem o mundo.
Tornei-me hemofílico num instante bom da
vida... Palitava calmamente os meus então vigorosos dentes, numa atitude cheia
de pachorra e deselegância. Lembro-me bem que no palitar havia uma sensação de
prazer, ao aliviar a pressão que corpos estranhos exerciam metidos que estavam
nos espaços entre os dentes e forçando o aumento desses exíguos espaços,
liberando incômodas substâncias inflamatórias e desagradáveis odores na
fermentação. Também causava prazer a fricção da gengiva nas junções desta com
as polpas dentárias, vez que isto despertava uma coceirinha adormecida e uma
pitadinha leve de dolorimento.
Em dado instante percebi que sangrava. Sim e
continuamente.
Uma vez às voltas com uma hemorragia
gengival que não parava, enchia-me a boca de sangue, descia goela abaixo,
sufocava; fazia-me cuspir, babar, empapar o lenço, a gola da camisa e a camisa
toda, até sobrar para o primeiro pano que eu encontrasse pela frente. Uma vez
às voltas com tal drama e adivinhando a proximidade de um quadro de extrema
gravidade e até mesmo da morte. Saí correndo à procura de um Pronto Socorro. No
Pronto Socorro prontamente me disseram que eu seria levado a um Banco de Sangue
que ficava nos fundos do hospital e que tinha pessoal especializado e meios
para me acudir.
Embarcado em
uma ruidosa maca fui sendo levado às pressas pela calçadinha que contornava o
hospital.
Ainda bem
que eu não estava só.
Comigo
seguiam uma parente distante, um enfermeiro me dizendo para ter calma, um
eficiente maqueiro que dirigia, servia de motor nas subidas e de freio nas
decidas mais íngremes do trajeto.
De um modo ou de outro, aos trancos e
barrancos, acabei chegando no tal Banco de Sangue onde limparam minha boca,
comprimiram minha gengiva com gaze embebida em soro com adrenalina, deram uma
geral na minha fachada com solução de água oxigenada, providenciaram exames e transfusões de plasma,
concentrado de fator VIII e, coroando o séquito de reposições, depois de balançar
negativamente uma cara de desaprovação por meu sangue ser uma espécie de
raridade chamada B Negativo, um técnico baixotezinho veio com um frasco de sangue
total geladinho e, tuff, acoplou na
agulha que já estava no meu braço desde o primeiro plasma.
Devidamente recuperado, na manhã seguinte,
fui para casa tomar banho e remover uma lambança de sangue ressequido que eu
tinha por tudo quanto é canto imaginável da superfície corpórea,
principalmente, e para meu azar, nas partes mais peludas onde a remoção muitas vezes tinha que ser feita, ora na
marra, ora às custas de perdas de enormes mechas que era quando me via obrigado
a apelar para tesouras, giletes ou aparelhos de barbear na eliminação de uns
tufos formados por cabelos, soro seco, fibrinogênio e hemácias transformados em
verdadeira argamassa.
Haviam me dito que era hemofilia. Era a
chamada A.
Depois do banho vesti roupas limpas e frescas,
fui até a janela arejar um pouco a cabeça e então me deitei e libertei de todo
o pensamento deixando-o analisar por todos os ângulos a nova situação em que,
da noite para o dia, me encontrava.
O resultado
foi introjetar a nova situação e partir para um planejamento de vida.
Não se casar, não procriar, não me ferir,
não dar topada, não beijar ardentemente, não isso, não aquilo... não... não e
nãos.
Saquei rapidinho que seria difícil viver
entre os humanos normais, fazendo as coisas que fazem, e impossível viver
isolado, vez que os mesmos são ricos em fator VIII e eu doravante seria física,
psíquica e religiosamente dependente dessa santa gosminha posteriormente
liofilizada e transformada num caríssimo pozinho. A dependência já estava
estabelecida antes de eu nascer.
Foi aí que, através de um outro hemofílico
conhecido meu, eu me aproximei, passo a passo e acabei por ser admitido na
festiva e feliz tribo de uns hemofílicos.
Fui recebido com naturalidade: sem euforia,
sem iniciação, sem resistências.
Várias características me deram a impressão
de que costumes, usos e tradições seculares regiam aquele grupamento que por
viver mais ou menos isolado, com seus usos e costumes próprios, pensei como
tribo.
O pó anti-hemofílico lá, a bem dizer, corria
solto. E, de mamando a caducando todos tinham acesso. Haviam até bolado uma
maneira menos incômoda de o ingerir. Ao invés de esperarem as crises
hemorrágicas, os derrames articulares, os volumosos hematomas para se medicarem,
não; usavam-no cronicamente, aspirando de uma a algumas pitadas diárias e isso
os mantinham em excelentes condições de saúde.
Porque havia alguns que não gostavam, ou
negligenciavam o uso diário e sistemático do liofilizado; o Conselho da Saúde
Preventiva, após acurados estudos, resolveu oferecer as pitadas aromatizadas e,
para isso, desenvolveu variados aromas como: cheiro de rapé para os que vinham de zonas de cultivo de
tabaco; aroma chiclete japonês para a criançada; aroma viagem profunda para alguns
viciados em outros pós; aroma pó de arroz para os almofadinhas; aroma me chama que
eu vou; aroma tradição família e propriedade; aroma selva espessa; desmatamento;
mato queimado; arroz com feijão; espuma de chopp; e, para os mais resistente, a
pitada absolutamente irresistível: aroma fêmea no cio.
De forma que picada de agulha ali, era uma
raridade. Hemorragias, pouquíssimas.
Abstinências, cuidados excessivos, proibições de mil coisas, tudo era
posto de lado ou observado tão sutil e moderadamente que se tornava
imperceptível.
A comunidade em outros tempos, viveu agudos
apertos mas, na minha época já atingira quase a autossuficiência; plantando suas próprias roças: criando gado
para o consumo interno e desenvolvendo a produção liofilizada em sua própria
indústria, dos pós anti-hemofílicos com a vantagens da aromatização e
exportando outros hemoderivados em troca de doações de sangue de humanos
normais.
Ah! Tempos bons aqueles em que ali vivi,
longe dessa balbúrdia da normalidade.
O namoro, considerado salutar, necessário,
indispensável; era incentivado, mas o casamento não. Misturar hemofilias,
gestar, parir, cortar umbigos eram fatores de risco sempre lembrados apesar das
pitadas inaladas como costume. De forma que o amor platônico era apregoado como
alimento da alma, inspirador, inebriante, edificante. Porém o namoro mais
chegado, o muito chegado também podia e, se mesmo com a desaprovação das famílias,
dos amigos, dos conselheiros; dois seres resolvessem se casar, o casamento era
permitido com a orientação de que os filhos poderiam vir com o problema e até
não sobreviverem conforme ocorresse a combinação genética. Vez por outra surgia
um namoro de alguém do grupo com alguém de fora, não era visto como problema,
era até uma possibilidade de solução para a perpetuação da comunidade. As
gestantes eram sempre acolhidas com alegria e com todos os cuidados e os
conceptos admitidos com amor e festas.
Era um
tremendo de um grupo festeiro, criativo, irmão. Uma tribo, melhor dizendo.
Aprendi a
rezar suas rezas;
Cantar seus
cantos;
Ouvir e
contar histórias;
Comer sem
pressa;
Amar e ser
amado, amar sem ser amado, ser amado sem amar, mas doando-se assim mesmo. – Usos e costumes lá deles.
Não se
rezava sem se ir, com a prece, galgando estados mentais sucessivos em direção
ao Incriado, até atingir a ilusão plena de que, abrindo os olhos o veríamos ali
na nossa frente.
Não se cantava sem sentir cada vez uma
emoção diferente;
As histórias eram sorvidas, minuciosamente sentidas,
oniricamente vividas;
Amor era para ser dado, haurido, exercitado.
Aí, num outro momento bom de minha vida,
quando eu tinha três belíssimas namoradas:
Uma que me amava e me ensinava a doar;
Uma que eu amava e me ensinava a sofrer;
Uma que me correspondia e era minha paz.
Contei e ouvi uma história;
Cantei baixinho e tristemente uma melodia milenar;
Comi devagarinho uma porção de paçoca;
Olhei o povo nas praças;
Vaguei pelas ruas do lugarejo e revi minhas
namoradas;
Ajoelhei-me num edredom espesso, em um
templo vazio, reclinei-me e parti em busca de Deus.
Embriagado de tanto enlevo em que me
encontrava, percebi uma envolvência nítida e longa que atuava em mim e, então,
me senti curado.
Certo de que me tornara normal e, assim sem
o elo fundamental com a tribo, ainda me submeti a testes para certificar-me
totalmente disso. Inútil, os testes comprovaram minha normalidade. Para
despedir participei de uma última reunião onde aspiravam o liofilizado pozinho
e recebi como derradeira homenagem um lançamento: a pitadinha com aroma
Coca-Cola.
Joguei o casaco no ombro, experimentei as
botas para ver se estavam confortáveis nos pés, acenei uma despedida e ganhei a
estrada para a longa caminhada de volta ao mundo do cotidiano. – 1990 -
Rilmar
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