quinta-feira, 18 de abril de 2019

Porque não me Tornei um Grande Desenhista

Porque não me Tornei um Grande Desenhista


(Rilmar)

Estava tão impregnado de sentimentos por uma menina, que não conseguia deixar de pensar na imagem dela, nos jeitos, nos modos, na graciosidade, no azul daqueles olhos, nos cabelos que balançavam tão leves, tão soltos, tão sedosos quando ela andava ou o vento neles batia.

Com a incrível facilidade que eu tinha para desenhar, para recriar imagens que estivessem habitando minha mente; para acrescentar encantos, beleza, magnetismo, modos de me olhar das meninas da minha meninice; sempre elas.

Às vezes acontecia de eu me apaixonar por alguma professora. Nesse último caso, o ensino era presencial e o secreto amor, à distância.

Com minha arte pululando nas veias; a beleza e o encanto das mulheres ocupando grandes áreas do meu pensamento; era inevitável que eu saísse desenhando rostos, bocas, cabelos, musas por inteiro. Nem sempre me limitava a desenhar nos meus cadernos, nas costas de folhas de exercícios escolares, no quadro negro, nas margens dos meus livros de estudo. Vez por outra eu vislumbrava um painel em um pedaço de parede branca qualquer, que estivesse ao meu dispor e me expressava artisticamente, com todo esmero, com toda a arte, com minha integral capacidade de transformar, em imagem concreta, toda a magia e sonho que estivessem habitando meu pensar, meu coração, meu envolvimento.
Então, pensando naquela menina, compus uma cena tão linda, tão nítida, tão rica daqueles elementos que só os sonhos proporcionam. 
   A menina era um rosto em que todas as expressões sorvidas por meus olhos, interpretadas e sentidas por minha mente e meu coração, enchiam-se de irresistível magia e, de qualquer ângulo que eu olhasse, lá estavam sempre voltadas para mim, mormente seu olhar cândido e expressivo.
    Não fosse eu tão capaz na arte de desenhar, não tivesse eu esse dom expresso de maneira tão precoce em mim; as coisas poderiam ter corrido de outra forma.
    Porém, aquela cândida criatura, olhando sempre para quem a olhasse, exposta ali naquele painel que me custou tanto escolher; naquele desenho em preto e branco que encantava a todos com os encantos que eram dela e que minha imaginação revelava com nítidos toques do sonhador. A ninguém deixaria de tocar.  O olhar cândido dos olhos azuis que mesmo em preto e branco eram adivinhados, os cabelos soltos, claros, leves e sedosos; o sorriso apenas esboçado revelando a expressão alegre e juvenil. A conformação do rosto, a inclinação leve para um lado, a gola do vestido e a pequena porção de tecido que vinha a seguir, estampada de minúsculas florzinhas em fundo branco.
Isso só. Nada mais.
Apenas isso já foi suficiente para que a mãe, ao ter notícia e ver, reconhecesse, protestasse com veemência e incitasse o pai a ter uma conversa com meu pai, e com o diretor da minha escola, e com o padre de minha igreja, e com minha mãe e com o farmacêutico que era uma espécie de autoridade, e com muitas outras pessoas importantes e intimidadoras.
Levei uma, duas, várias carraspanas. 
Tive que limpar traço a traço cuidadosamente a parede que me servira de painel; cada traço desfeito, à vista de um grupo de pessoas que murmuravam e davam conselhos e palpites o tempo todo, desfazia minha criatura idealizada e ia machucando, passo a passo, profundamente minha alma.
Passei uns dias tristinho e meio envergonhado como se tivesse praticado um ato muito reprovável expondo ao mundo minha interpretação artística daquela criaturinha inocente, meiga e tão bela.

Nunca mais consegui desenhar.

A criaturinha ainda permaneceu bela por uns tempos, depois esteve bonitinha; mais tarde vieram sardas, espinhas, expressão preocupada, uma ruga na testa e, por fim mudou-se para outra cidade onde casou-se, teve muitos filhos e, ao que sei, foi e segue sendo muito feliz.

Eu, dos dons que tive, pouco me resta. Vez por outra, depois de incontáveis sessões de terapia, consigo desenhar umas florezinhas de quatro pétalas desiguais ao redor de um miolinho que mais não é que um ‘O’ tortuoso respingado de cores irreais e sem vida.

    
Às vezes ainda ocorre um tremor de mão gerando pétalas de bordas bruxuleantes e tortuosas, e a florzinha é triste e murcha e fica ali deixada sobre a folha em branco. Como espelho de uma alma.

Quem perdeu foi o mundo que ao invés de um desenhista desocupado e sonhador; andando por aí e embelezando o mundo. Tem hoje esse ser normal e comum, cujos olhos lacrimejam ao contemplar certas pinturas, batalhando pela vida como tantos outros.
(05.6.2018)

Nenhum comentário:

Postar um comentário