sábado, 23 de janeiro de 2021

Finalmente o Céu

 

                          Finalmente o Céu.

Reza a lenda que quem vai para o inferno fica condenado ao sempre do eterno sofrimento e ao nunca da eterna desesperança.

Com ele não foi bem assim. Deve ter ido para o inferno mais por uma questão de demanda exacerbada devido a uma pandemia e aos seus capitais pecados de orgulho, vaidade e soberba. Era médico aqui na terra e médicos estão sujeitos e esses pecados acrescidos de egocentrismo, e de um endeusamento que vem desde os tempos de vestibular quando ao serem aprovados, inflam-se de superioridade, pensam-se como deuses da intelectualidade e do saber.

Era cheio de boas intenções, mas sempre futuras.

Exercia a profissão com dedicação e acurácia, mas sempre muito vaidoso e cheio de si. Por mais que lhe pagassem por suas atuações, sempre e sempre achava que merecia mais. Que além do pagamento deveria, certamente, haver um reconhecimento de seu brilho e uma gratidão por seu tempo, atenção, saber acumulado e habilidade de suas mãos dedicados ao ato.

Porém, não se merece o inferno só por ser bom e saber disso.

Dessa vaidade, desse egocentrismo, desse anseio de admiração; advinham qualidades tais como uma grande necessidade de estar sempre estudando, revendo condutas através de publicações em revistas conceituadas e em livros de grandes autores. Trocando ideias com grande luminares os quais julgava estarem próximo de seu nível. Havia alguns que até mereciam seu respeito já que mergulhados em grandes hospitais onde pesquisas se desenvolviam.

Andava imponente e rápido nos corredores do hospital. Não costumava trocar ideias, dava pareceres e orientava condutas, sempre indiscutíveis, prontas e acabadas.

Conversava rápida e apressadamente, com os seres humanos normais, ainda que fossem colegas.

Ainda assim, fazia muitas e muitas coisas boas.

Suas desvirtudes não eram totalmente culpa sua. Tinha a mente brilhante a ponto de ser notado desde criança.

 Teve infância dura, desigual, sofrida, espezinhada.

No futebol era ruinzinho e sempre deixado em segundo plano, tinha que pedir para jogar e perceber os melhores torcerem a cara desaprovando. Indo pescar era sempre o que pegava menos e os menores peixes. Não sabia dançar, não tinha ritmo, ficava nas festinhas mais olhando que participando.

Nos estudos, foi aos poucos se descobrindo. Acabou descobrindo, nos livros; amigos, sonhos, caminhos, companheiros, borbotões de ideias prontinhas para serem colhidas. Ideias que se multiplicavam em sua cabeça, que respondiam perguntas, que traziam conhecimentos, que abriam cortinas para muitos mundos e sobretudo lhe abriam uma estrada ampla e infinita que descortinava para os seus olhos o universo da ciência, do saber, do conhecimento.

Os livros viraram amor. Esse amor virou paixão a medida em que foi descobrindo que livros de matérias específicas como ciência, física, matemática, química e outros; podiam dar prazer e serem lidos como os textos cheios de ideias. Depois descobriu mais pois foi percebendo que conhecimentos específicos facilitavam o entendimento de muitas e muitas ideias mais complexas e que até as tornavam mais e mais interessantes.

Tendo descoberto a pontinha da meada do conhecimento nos livros, agarrou-se a ela, mergulhou e se embebeu na fecunda fonte do conhecimento.

Quanto mais se embebia mais sede tinha.

Essa sede que nunca se aplacava totalmente, provocou tantas mudanças nele e em sua vida que findou por se tornar agradável, bonito, útil, necessário, vencedor e brilhante.

Finalmente chegou a ser um grande médico com domínio pleno de uma especialidade e amplo conhecimento dentro da medicina em geral e de outras áreas do conhecimento.

Não havia situação, tema ou assunto em que sua participação não acrescentasse luzes, soluções ou preciosas orientações.

No que dizia respeito à sua especialidade; era soberano. Segundo seu conceito e o de seus pares.

Era assim que se sentia.

Mas, como sabemos, morreu e como no inferno carecessem desesperadamente de médicos; competentes, capazes de morrer de trabalhar, vaidosos, pluriaptos e egocêntricos.

Foi apressadamente admitido.

Mais tarde, revendo a folha corrida de sua vida, trocaram o termo Folha Corrida por: Curriculum Vitae e, enquanto dormia em seu quartinho mofado e infestado de muriçocas, foi transposto para um lugar maravilhoso; provavelmente o CEU.

Absolutamente afeito aos livros e ao seu trabalho, não era capaz de conceber felicidade sem o exercício da profissão, sem o endeusamento que sentia e que lhe davam devido a suas habilidades aos resultados de suas ações dentro do mundo hospitalar.

Lembrou-se da mãe que já havida morrido, de um amigo, de um tio, e dos avós que não haviam convivido muito com ele.

Aí, portentoso, iluminado, irresistível viu um prédio iluminado por um grande painel brilhante, com o nome: Instituto de Tecnologia e Pesquisa e Complexo Hospitalar - Média e Alta complexidades – 24 Horas.

Meu Deus!...  O Céu, com certeza começa ali!... Exclamou já se dirigindo para lá.

Muito ao contrário do que tinha experimentado no inferno; ali tudo era perfeito. Sabemos que o perfeito tem um conceito geral, mas para cada um de nós pode ter nuances que o diferencia.

A entrada para os médicos era separada da portaria principal por questões de logística. Já imaginava que fosse assim pelo tratamento que tinha quando vivo.

Quando entrava, um embutido alto falante já citava seu nome: Atenção Dr. Linneu (talvez fosse esse o nome dele), pacientes nas salas cinco, seis, oito aguardam suas últimas orientações para que as equipes comecem a atuar; na sala dez encontra-se a paciente sua com cirurgia agendada para hoje. Exames e pareceres pré-operatórios encontram-se na ante-sala que precede a de paramentação. Anestesista, médico auxiliar da cirurgia e todos demais componentes da equipe estão à disposição. Aguardamos ainda sua última palavra.

Experimentou a mente repassando a cirurgia detalhe por detalhe, tentou lembrar os nomes dos componentes da equipe, lembrou um por um. Repassou nomes de remédios, de sais, diluições, rotinas para algum imprevisto, anatomia; tudo vinha com uma clareza e rapidez como nunca, mesmo com sua Mente Brilhante, tivera antes.

Experimentou as pernas, testou a coluna, fez movimentos com o pescoço, com os braços, com as mãos e com os dedos. Tudo em ordem sem nem um pequeno porém. Não sentia fome, nem sede, os órgãos internos não davam qualquer sinal de disfunção ou urgência inoportuna.

Leve, livre, solto e feliz. Eis como se sentia.

Repassando os exames cuidadosamente e os pareceres, lembrou-se perfeitamente da paciente e sentiu que tudo iria dar certo.

Ao trocar de roupa, despiu-se quase que obedecendo um ritual. Desabotou a blusa, retirou-a com cuidado para não amarrotar demais, colocou-a em um cabide e pendurou no amplo armário que estava à sua disposição. Sentou-se e tirou os sapatos e os guardou, por fim despiu-se retirando a calça, carteira e chaveiro não estavam com ele, mas não estranhou. Dobrou cuidadosamente a calça guiado pelos vincos já existentes e pendurou-a no cabide. Começou uma paramentação inicial colocando roupas esterilizadas, máscara, gorro e pró pé. Atravessou um corredor e foi continuar o rigoroso preparo antes de poder entrar em alguma sala.

Deu pareceres, orientações, trocou algumas informações e finalmente dirigiu-se para a sala onde estava sua paciente, acabou de se preparar e receber aventais, luvas etc. E mergulhou no trabalho.

Trabalhou incontáveis horas sem se dar conta de que o tempo passava. Não havia cansaço. O convívio com as equipes era ótimo. O pós operatório era seguro, eficiente, maravilhoso.

Depois de cada cirurgia havia um pequeno congraçamento na sala do cafezinho onde se comentava detalhes, ressaltavam os êxitos, trocavam elogios, esticavam-se as pernas por breves minutos, comentava-se alguma coisa leve do cotidiano e ficava-se por ali até ser chamado para a próxima ação.

O tempo passava de forma completamente diferente do que acontece em nosso mundo.

Em um determinado momento sentia-se que era necessário mudar tudo para o refazimento do ânimo, da vontade e da percepção de tudo. Então todo mundo voltava para o cotidiano do Céu.

A alimentação já fora feita no hospital, mas podiam se sentar num local de refeição e ter uma mesa só para si ou usufruir da companhia de sua preferência. Amigo, esposa, filhos, conhecidos ou o que lhe fosse aprazível.

Depois havia uma sala de estar onde também se podia escolher a companhia. Até grandes sábios como Pasteur, Einstein, Gabo e outros podiam estar com ele. Por alguma tecnologia que ainda não temos por aqui.

O fato é que ele, embora não notasse cansaço, estava louco por um bom banho, roupas limpas, cama macia e fresquinha e uma noite silenciosa e tranquila.

Tudo lhe foi concedido.

                                                 (A seguir UTI e plantões)

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