terça-feira, 22 de outubro de 2019

Dona Magnólia Virou Santa

                  DONA MAGNÓLIA VIROU SANTA
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Bebia umas pingas de vez em quando, ia pouco à igreja, rezava a todo instante. Era temente a Deus, boa e caridosa. Resignada com a vida, com o trabalho, com a criação dos três filhos, sem ter marido e morando numa casinha que parecia um forninho de assar biscoitos no fundo do quintal. Era um local meio sem dono numa área próxima ao chamado Corte dos Urubus, que era um corte no morro onde ela morava, feito para a passagem do trem-de-ferro.
Nem água encanada, nem esgoto, nem energia elétrica.
 Dentro da casa não tinha quase nada a não ser os catres, arremedos de camas com capins ensacados servindo de colchão. O fogão era um amontoado de pedras rejuntadas com barro de cerâmica cavoucado ali por perto. Lenha eram paus tortuosos buscados no cerrado ou furtados na beira da estrada de ferro.
Rezava muito, pedia a Deus e agradecia à toda hora ao que Deus fazia por ela, pelos seus e pelas pessoas de quem ela gostava. Estar viva, não ser atacada por malfeitores nem por inimigos anônimos, não ver fantasmas, ser guardada contra as maldades do capeta, adoecer pouco, ter seus filhos vivos e sem doenças aparentes. Acho que é por essas coisas que ela tanto agradecia.
Dona Magnólia xingava nomes feios de vez em quando, falava a palavra desgraça e chamava o capeta por apelidos como romãozinho, temerosa de pronunciar o nome verdadeiro do coisa ruim.
Trabalhadeira como ninguém. Lavava roupa de ganho. Lavadeira.  Nunca brigava com a patroa, nem mesmo quando traziam umas roupas sujas já no final da lavação, quando a mala já estava quase acabando. Mascava fumo, falava sozinha, e tinha poucos dentes. Cuspinhava de vez em quando jogando o cuspe amarronzado da mascação de fumo longe e de banda.
Não sei como é que conseguia trabalhar daquele tanto tendo braços tão finos. Seus braços eram fininhos desde aqui em cima, descendo pelo antebraço e incluindo as mãos e cada dedo. Os cotovelos de tão desprovidos permitiam a visualização anatômica perfeita dos encaixes. Seus cabelos, meio encarapinhados eram ralos e curtos. Sempre penteadinhos e no mais das vezes cobertos com um lenço improvisado com um retalho de algum lençol velho. A cabeça também era pequena e o pescoço fino, fino. O corpo era mirradinho e se continuava por pernas e coxas exíguas; fininhas. Os pés miudinhos, de aparência frágil, tinham solas ásperas sofridas e com algumas trincaduras nos calcanhares. Só a leveza de seu corpo poderia explicar o porquê daquelas pernas e pés serem capazes de sustentar e carregar aquele ser de casa para o serviço, zanzar na beirada do tanque o dia inteiro e ir incontáveis vezes do tanque para o quintal onde estendia as roupas nos arames, sempre em solilóquio, murmurando alguma prece ou remoendo lembranças. Almoçava junto conosco e comia o que nós comêssemos além de dar um prato para a filha que não desgrudava dela e era também muito magrinha e mirrada.
No fim do dia, saía levando o ganho do dia e alguma coisa de presente que minha mãe lhe dava, qualquer coisa,  geralmente comida, e as mesmas pernas mirradas e fininhas passavam com ela num boteco bem no final da rua onde ela tomava lá uma boa pinga, talvez comprasse um pedaço de fumo para a mascação; a companhia de suas mágoas;  para um outro jeito de ver o mundo; o consolo pelo companheiro que não tinha. Acho que tudo estava ali naquele gole de pinga e no naco de fumo que levava para aliviar as dores de dentes, desinfectar a boca e propiciar um sono bom na miséria do abrigo onde se aninhava durante a noite.
Não ia tanto à igreja, mas comparecia nas casas onde rezassem o terço, festejassem dias santos e aceitassem de bom grado sua presença. Também acompanhava alguma procissão, cantando ladainhas misturada com outros cristãos. Nas tempestades gritava por santos consagrados para as ocasiões e inteirava invocando outros santos de sua devoção.
Sua religiosidade era inquestionável.
Demonstrava sempre muita fé. 
Pecados, talvez não os tivesse e, se aqui ou ali cometesse um ou outro pequeno deslize; certamente os purgava logo em seguida devido à vida de sacrifícios e resignações que levava.
Era boa, humilde e trabalhadeira. Todo mundo gostava dela.
Muitas e muitas vezes vi seu vulto se afastando na boca da noite indo embora para sua casa. Tantas e tantas vezes a vi chegando com seu vestidinho puído, ralo, caído sobre o corpinho miúdo e magro, sempre mascando um pedacinho de fumo e exibindo a exiguidade de seus dentes. Os da frente eram apenas um canino e um incisivo, mais para o lado direito. O pedaço de fumo disfarçava as outras falhas. Sua presença era benfazeja e esperada. Tomava um café com alguma quitanda, de pé no meio da cozinha e já ia caminhando em direção ao tanque de roupas.
Acho que o dia dela vir era sempre nas quartas-feiras. Chegava de manhã e ficava até quase o fim do dia. Já era um costume dela e nosso.
Um dia ela não veio...
Não apareceu por muitos dias. Até que nós, crianças percebemos e perguntamos uns aos outros primeiro e, depois perguntamos aos adultos.
Dona magnólia morreu!
Mas como, se ela nem estava doente.
Tão magrinha, tão mirradinha, comendo pouco, mascando fumo, tomando uma pinga no fim do dia, dormindo mal acomodada e cercada de barbeiros; sempre cantarolando, falando sozinha, deixando às vezes, escapar uma lágrima no canto do olho. Mesmo assim, ao nosso ver de crianças, sadia, sã, forte.
Na nossa cabeça de meninos as pessoas são de um certo jeito e pronto. Dona Magnólia era daquele jeito mesmo.
Não era...
 Era doente e sofrida. Tinha uma natureza de ferro e por isso passava a impressão de que era daquele jeito mesmo e que assim iria viver anos e anos como todo mundo.
Não viveu...
Morreu dormindo, do jeitinho que se deitou morreu. Talvez nem tenha sofrido. Deve ter feito suas preces, conversado com Deus e, dormindo, no correr da noite morreu.
Dona Magnólia era sem dúvida uma alma santa.
Deve ter ido para o céu.
Achamos que ela foi direto para Deus.
Os adultos, a cidade, a igreja, as autoridades; ninguém percebia sua santidade, a não ser as crianças que admiravam aquela criatura tão sem queixa, ser tão mirradinha e estar sempre ali trabalhando e cantarolando como se estivesse continuamente feliz.
 Não pensamos em bispos nem papa, nem nas freiras, nem no padre. Resolvemos canonizá-la, nós mesmos; os meninos e meninas.
 Ninguém nos daria ouvidos.
 A beatitude varia muito conforme as pessoas que se reúnem para atribuí-la a alguém.
Mais santa, mais crente, mais resignada, mais sofrida e conformada do que ela, a agente nunca viu ninguém. Mais extremosas com a filha que estava sempre grudada nela e para a qual ela tirava da boca para alimentar, nunca tínhamos visto.
E o tanto que ela acarinhava e beijava aquela filhinha várias vezes no dia e carregava no colo com as forças dos braços franzinos e das pernas tão fininhas.
A maneira como foi criada, no serviço, analfabeta, ciente de seu lugar no mundo, comendo o pouco que lhe dessem; talvez por isso os neurônios não fossem tantos ou tão capacitados. O fato é que só era capaz de ser simples e humilde. Nunca lhe ocorreram projetos maiores ou mais abrangentes.
Ninguém haveria de ter tanta paciência quanto ela que nos tolerava sem levantar sequer a voz para pedir que controlássemos nossas diabruras ali por perto do tanque, enquanto ela lavava a trouxona imensa de roupas imundas da molecada.
Dona Magnólia vai ser santa. Se não for de todas as pessoas, será, ao menos nossa santa.
Improvisamos um altarzinho no canto do muro, acendemos duas ou três velas, tomamos um rosário emprestado dos guardados de minha mãe; também uma velha Bíblia que ficava sempre numa gaveta reservada lá no quarto de meus pais, nós pegamos por empréstimo.
Alguém mais letrado, delineou o culto, fez uma lista de frases e orações que deveriam ser pronunciadas lentamente e com muita fé. O culto incluía, além das rezas, sacrifícios de se ajoelhar no chão bruto, permanecer ajoelhados um certo tempo, contritos, de braços cruzados, sérios e com o pensamento voltado para Deus.
E íamos repetindo coisas já ouvidas nas novenas, nos terços, nas rezas de ofertórios a santos populares e depois rogávamos a Deus que santificasse Dona Magnólia. E dávamos nossos testemunhos do quanto ela era boa, e pura, e   temente a Deus, do quanto tinha sofrido durante a parte de sua vida que presenciamos. Ressaltamos o fato de ela não ter marido que a ajudasse no sustento e a protegesse. Pedimos perdão pelos seus pequenos vícios. Por fim derramamos sobre ela, que deveria estar ali em espírito, nosso amor e gratidão por tudo de bom que tinha feito para nós o tempo todo. 
Deus aceitou.
Nosso íntimo, nossos corações, nossa fé, nossas alminhas; em certo momento nos disseram isso.
Depois fomos lentamente contando para as pessoas que Dona Magnólia agora era uma santa.
Dias depois fizemos uma linda missa no quintal em louvor a Dona Magnólia. A presença de público foi fraca. Mas, nós, os canonizadores comparecemos e até conseguimos mais alguns adeptos. Pessoas simples, crédulas, necessitadas, desesperadas, nós e mais algumas crianças que acharam interessante aquilo que estávamos fazendo.
Aí, começaram os milagres.
 Testemunhos e mais testemunhos de que coisas maravilhosas haviam acontecido na vida de pessoas que estiveram na missa e até de dos que nem sabiam que tinha havida a missa, porém lá na missa alguém havia pedido por elas.
A beatificação começou a se espalhar pela cidade. Chegou na igreja...
Vieram as proibições, as reprimendas, as conversas com os pais. Tudo serviu para divulgar mais e mais o nosso ato.
A partir daí a beatificação se consolidou entre os humanos.
 Lá no céu, certamente havia até festa pela chegada de Dona Magnólia que em sua simplicidade deve optado por permanecer com a mesma aparência com a qual a conhecíamos: Nem bonita nem feia. Apenas ela, Dona Magnólia; agora Santa Magnólia. Mirradinha, franzina, magrinha de pernas e braços muito finos, boca desprovida, olhar doce e humilde, mas acrescida agora de um envoltório de luz e a auréola que ela sempre imaginou que os santos ostentavam sobre a cabeça.
Santa Magnólia, rogai por nós!... Não nos queira mal, somos apenas humanos.
Rilmar – 15/10/2019



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