DONA MAGNÓLIA VIROU SANTA
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Bebia umas
pingas de vez em quando, ia pouco à igreja, rezava a todo instante. Era temente
a Deus, boa e caridosa. Resignada com a vida, com o trabalho, com a criação dos
três filhos, sem ter marido e morando numa casinha que parecia um forninho de
assar biscoitos no fundo do quintal. Era um local meio sem dono numa área
próxima ao chamado Corte dos Urubus, que era um corte no morro onde ela morava,
feito para a passagem do trem-de-ferro.
Nem água
encanada, nem esgoto, nem energia elétrica.
Dentro da casa não tinha quase nada a não ser
os catres, arremedos de camas com capins ensacados servindo de colchão. O fogão
era um amontoado de pedras rejuntadas com barro de cerâmica cavoucado ali por
perto. Lenha eram paus tortuosos buscados no cerrado ou furtados na beira da
estrada de ferro.
Rezava muito,
pedia a Deus e agradecia à toda hora ao que Deus fazia por ela, pelos seus e
pelas pessoas de quem ela gostava. Estar viva, não ser atacada por malfeitores
nem por inimigos anônimos, não ver fantasmas, ser guardada contra as maldades
do capeta, adoecer pouco, ter seus filhos vivos e sem doenças aparentes. Acho
que é por essas coisas que ela tanto agradecia.
Dona
Magnólia xingava nomes feios de vez em quando, falava a palavra desgraça e
chamava o capeta por apelidos como romãozinho, temerosa de pronunciar o nome
verdadeiro do coisa ruim.
Trabalhadeira
como ninguém. Lavava roupa de ganho. Lavadeira. Nunca brigava com a patroa, nem mesmo quando traziam
umas roupas sujas já no final da lavação, quando a mala já estava quase
acabando. Mascava fumo, falava sozinha, e tinha poucos dentes. Cuspinhava de
vez em quando jogando o cuspe amarronzado da mascação de fumo longe e de banda.
Não sei como
é que conseguia trabalhar daquele tanto tendo braços tão finos. Seus braços
eram fininhos desde aqui em cima, descendo pelo antebraço e incluindo as mãos e
cada dedo. Os cotovelos de tão desprovidos permitiam a visualização anatômica perfeita
dos encaixes. Seus cabelos, meio encarapinhados eram ralos e curtos. Sempre
penteadinhos e no mais das vezes cobertos com um lenço improvisado com um
retalho de algum lençol velho. A cabeça também era pequena e o pescoço fino,
fino. O corpo era mirradinho e se continuava por pernas e coxas exíguas;
fininhas. Os pés miudinhos, de aparência frágil, tinham solas
ásperas sofridas e com algumas trincaduras nos calcanhares. Só a leveza de seu
corpo poderia explicar o porquê daquelas pernas e pés serem capazes de
sustentar e carregar aquele ser de casa para o serviço, zanzar na beirada do
tanque o dia inteiro e ir incontáveis vezes do tanque para o quintal onde
estendia as roupas nos arames, sempre em solilóquio, murmurando alguma prece ou
remoendo lembranças. Almoçava junto conosco e comia o que nós comêssemos além
de dar um prato para a filha que não desgrudava dela e era também muito
magrinha e mirrada.
No fim do
dia, saía levando o ganho do dia e alguma coisa de presente que minha mãe lhe
dava, qualquer coisa, geralmente comida,
e as mesmas pernas mirradas e fininhas passavam com ela num boteco bem no final
da rua onde ela tomava lá uma boa pinga, talvez comprasse um pedaço de fumo
para a mascação; a companhia de suas mágoas; para um outro jeito de ver o mundo; o consolo
pelo companheiro que não tinha. Acho que tudo estava ali naquele gole de pinga
e no naco de fumo que levava para aliviar as dores de dentes, desinfectar a
boca e propiciar um sono bom na miséria do abrigo onde se aninhava durante a
noite.
Não ia tanto
à igreja, mas comparecia nas casas onde rezassem o terço, festejassem dias
santos e aceitassem de bom grado sua presença. Também acompanhava alguma
procissão, cantando ladainhas misturada com outros cristãos. Nas tempestades
gritava por santos consagrados para as ocasiões e inteirava invocando outros
santos de sua devoção.
Sua
religiosidade era inquestionável.
Demonstrava
sempre muita fé.
Pecados,
talvez não os tivesse e, se aqui ou ali cometesse um ou outro pequeno deslize; certamente
os purgava logo em seguida devido à vida de sacrifícios e resignações que
levava.
Era boa,
humilde e trabalhadeira. Todo mundo gostava dela.
Muitas e
muitas vezes vi seu vulto se afastando na boca da noite indo embora para sua
casa. Tantas e tantas vezes a vi chegando com seu vestidinho puído, ralo, caído
sobre o corpinho miúdo e magro, sempre mascando um pedacinho de fumo e exibindo
a exiguidade de seus dentes. Os da frente eram apenas um canino e um incisivo,
mais para o lado direito. O pedaço de fumo disfarçava as outras falhas. Sua
presença era benfazeja e esperada. Tomava um café com alguma quitanda, de pé no
meio da cozinha e já ia caminhando em direção ao tanque de roupas.
Acho que o
dia dela vir era sempre nas quartas-feiras. Chegava de manhã e ficava até quase
o fim do dia. Já era um costume dela e nosso.
Um dia ela não
veio...
Não apareceu
por muitos dias. Até que nós, crianças percebemos e perguntamos uns aos outros primeiro
e, depois perguntamos aos adultos.
Dona
magnólia morreu!
Mas como, se
ela nem estava doente.
Tão
magrinha, tão mirradinha, comendo pouco, mascando fumo, tomando uma pinga no
fim do dia, dormindo mal acomodada e cercada de barbeiros; sempre cantarolando,
falando sozinha, deixando às vezes, escapar uma lágrima no canto do olho. Mesmo
assim, ao nosso ver de crianças, sadia, sã, forte.
Na nossa
cabeça de meninos as pessoas são de um certo jeito e pronto. Dona Magnólia era
daquele jeito mesmo.
Não era...
Era doente e sofrida. Tinha uma natureza de
ferro e por isso passava a impressão de que era daquele jeito mesmo e que assim
iria viver anos e anos como todo mundo.
Não viveu...
Morreu
dormindo, do jeitinho que se deitou morreu. Talvez nem tenha sofrido. Deve ter
feito suas preces, conversado com Deus e, dormindo, no correr da noite morreu.
Dona
Magnólia era sem dúvida uma alma santa.
Deve ter ido
para o céu.
Achamos que
ela foi direto para Deus.
Os adultos,
a cidade, a igreja, as autoridades; ninguém percebia sua santidade, a não ser
as crianças que admiravam aquela criatura tão sem queixa, ser tão mirradinha e
estar sempre ali trabalhando e cantarolando como se estivesse continuamente
feliz.
Não pensamos em bispos nem papa, nem nas
freiras, nem no padre. Resolvemos canonizá-la, nós mesmos; os meninos e
meninas.
Ninguém nos daria ouvidos.
A beatitude varia muito conforme as pessoas
que se reúnem para atribuí-la a alguém.
Mais santa,
mais crente, mais resignada, mais sofrida e conformada do que ela, a agente
nunca viu ninguém. Mais extremosas com a filha que estava sempre grudada nela e
para a qual ela tirava da boca para alimentar, nunca tínhamos visto.
E o tanto que ela acarinhava e beijava aquela filhinha várias vezes no dia e carregava no colo com as forças dos braços franzinos e das pernas tão fininhas.
E o tanto que ela acarinhava e beijava aquela filhinha várias vezes no dia e carregava no colo com as forças dos braços franzinos e das pernas tão fininhas.
A maneira
como foi criada, no serviço, analfabeta, ciente de seu lugar no mundo, comendo o
pouco que lhe dessem; talvez por isso os neurônios não fossem tantos ou tão
capacitados. O fato é que só era capaz de ser simples e humilde. Nunca lhe
ocorreram projetos maiores ou mais abrangentes.
Ninguém
haveria de ter tanta paciência quanto ela que nos tolerava sem levantar sequer
a voz para pedir que controlássemos nossas diabruras ali por perto do tanque,
enquanto ela lavava a trouxona imensa de roupas imundas da molecada.
Dona
Magnólia vai ser santa. Se não for de todas as pessoas, será, ao menos nossa
santa.
Improvisamos
um altarzinho no canto do muro, acendemos duas ou três velas, tomamos um
rosário emprestado dos guardados de minha mãe; também uma velha Bíblia que
ficava sempre numa gaveta reservada lá no quarto de meus pais, nós pegamos por
empréstimo.
Alguém mais
letrado, delineou o culto, fez uma lista de frases e orações que deveriam ser
pronunciadas lentamente e com muita fé. O culto incluía, além das rezas,
sacrifícios de se ajoelhar no chão bruto, permanecer ajoelhados um certo tempo,
contritos, de braços cruzados, sérios e com o pensamento voltado para Deus.
E íamos
repetindo coisas já ouvidas nas novenas, nos terços, nas rezas de ofertórios a
santos populares e depois rogávamos a Deus que santificasse Dona Magnólia. E
dávamos nossos testemunhos do quanto ela era boa, e pura, e temente a Deus, do quanto tinha sofrido
durante a parte de sua vida que presenciamos. Ressaltamos o fato de ela não ter
marido que a ajudasse no sustento e a protegesse. Pedimos perdão pelos seus
pequenos vícios. Por fim derramamos sobre ela, que deveria estar ali em
espírito, nosso amor e gratidão por tudo de bom que tinha feito para nós o
tempo todo.
Deus
aceitou.
Nosso
íntimo, nossos corações, nossa fé, nossas alminhas; em certo momento nos
disseram isso.
Depois fomos
lentamente contando para as pessoas que Dona Magnólia agora era uma santa.
Dias depois
fizemos uma linda missa no quintal em louvor a Dona Magnólia. A presença de
público foi fraca. Mas, nós, os canonizadores comparecemos e até conseguimos
mais alguns adeptos. Pessoas simples, crédulas, necessitadas, desesperadas, nós
e mais algumas crianças que acharam interessante aquilo que estávamos fazendo.
Aí,
começaram os milagres.
Testemunhos e mais testemunhos de que coisas
maravilhosas haviam acontecido na vida de pessoas que estiveram na missa e até
de dos que nem sabiam que tinha havida a missa, porém lá na missa alguém havia
pedido por elas.
A
beatificação começou a se espalhar pela cidade. Chegou na igreja...
Vieram as
proibições, as reprimendas, as conversas com os pais. Tudo serviu para divulgar
mais e mais o nosso ato.
A partir daí
a beatificação se consolidou entre os humanos.
Lá no céu, certamente havia até festa pela
chegada de Dona Magnólia que em sua simplicidade deve optado por permanecer com
a mesma aparência com a qual a conhecíamos: Nem bonita nem feia. Apenas ela, Dona
Magnólia; agora Santa Magnólia. Mirradinha, franzina, magrinha de pernas e
braços muito finos, boca desprovida, olhar doce e humilde, mas acrescida agora
de um envoltório de luz e a auréola que ela sempre imaginou que os santos
ostentavam sobre a cabeça.
Santa
Magnólia, rogai por nós!... Não nos queira mal, somos apenas humanos.
Rilmar – 15/10/2019
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