Histórias
Possíveis
A grande
aventura e a grande emoção, muitas vezes se confundem. Pode acontecer nos mais
variados ambientes. A movimentação pode ser intensa, moderada ou discretíssima.
Sim, é isso mesmo, pode ser quase estática. Não inerte; já que vivemos a bordo
de uma imensa nave que se desloca pela imensidão; e, no universo, tudo se move.
Quando no
microscópio quieto e mudo, Pasteur observava uma lâmina de tartarato
cristalizado, notou de repente que havia ali dois tipos diferentes de cristais,
parecidíssimos, quase iguais, mas que eram, na verdade, imagens no espelho uns
dos outros. Preparado como era, conseguiu deduzir que estava diante de cristais
que se separados, poderiam apresentar muitas propriedades que ainda mais os
diferenciariam. E foi o que acabou provando. Uns tinham a capacidade de desviar
a luz polarizada para a direita e outros, para a esquerda. Quieto, sentado,
atento viveu ali um de suas mais emocionantes aventuras. Chamou-os:
dextrógiros, levógiros e à mistura, racemato. Testes com diluições de uns e de
outros, levou-o a perceber que as propriedades se mantinham, daí concluiu que
eram propriedades das moléculas do tartarato – viveu ali, sua primeira grande
aventura no mundo científico, à qual muitas outras se seguiriam.
De outra
feita, uma aranha estava para ser apanhada por um escorpião e lançava um tênue
fio na esperança de que o vento o levasse e o ancorasse numa janela do outro
lado do beco. O escorpião, convicto de que venceria e garantiria o seu almoço;
aproximava-se lenta e terrivelmente, com as tenazes prontas para segurá-la e o
ferrão aguçado, alto, ameaçador, apenas aguardando rápidas mensagens nervosas
para o ato final.
A
aranhazinha, coitada, tremia, se apegava com Deus e os anjos protetores das
aracnídeas (já que aracnídeo, o escorpião também o é), numa oração assim:
Senhor, dai de comer aquém tem fome, mas não me dês que sou nova e queria
experimentar um pouco mais a vida. Dai sorte a quem dela precisa – e eu preciso
tanto...
Oh, Senhor!
Tirai esse escorpiãozão aí da minha frente, se não, eu estou perdida. Se
quereis um milagre mais leve, mandai um ventinho favorável para que meu fio
alcance a janela.
Orava
contrita, elevando as duas patas dianteiras juntas e volvendo misericordioso
olhar aos céus.
E, nada de
vento, nem ventinho. Calmaria total; maior que as das costas da África que, no
afã de evita-las, fizeram Cabral aportar por aqui.
Só dava
escorpiãozão andando, ameaçador.
Senhor,
continuava a aranhazinha, se não for possível ancorar meu fio ao longe, nem
mandar um ventinho a tempo, nem tirar esse monstro pré-histórico daí, Senhor:
Aplacai-lhe a forme para que desista, paralizai-o para que eu fuja,
enfartai-lhe o coração, acidentai-lhe o cérebro, amputai-lhe o ferrão...
Senhor, eu
quero viver!
Tenazes em
riste, corpo reto, pernas dobradas para fora achatando o corpo contra o solo
que lhes servia de palco; cauda curvada para cima... Terrível... terribilíssimo
se visto da posição dela.
Oh Senhor,
prestai bem atenção nele Senhor... Ele está gordão e barrigudo e, acho que nem
tem muita fome. Senhor, esse camarada vai me comer só de gulodice!...
E o
escorpião sempre vindo... vindo.
E a
aranhazinha recuando, orando, oferecendo novas ideias a Deus e prestando a
maior atenção do mundo a cada passo, cada gesto, cada movimento do inimigo, sem
se distrair do cenário em volta que é de onde ela mais esperava um socorro.
Perto, muito
perto, quando já quase poderia alcançá-la o escorpião parou um instante; talvez
para um último estudo; uma última avaliação; para certificar-se se a vítima
compensava o esforço de uma luta que seria provavelmente rápida, mas consumiria
energia e doses de veneno que poderiam fazer falta para um outro embate
ocasional qualquer.
Seja pelos
motivos atrás, ou porque aquela aranha de mãos postas e a conversar com o céu,
se comportava de maneira tão estranha; o fato é que houve um titubeio, uma
hesitação.
Quando não
havia mais o que fazer, nem mais tempo para rezas ou novas sugestões, uma leve
viração soprou e levou, mansamente a navegar pelos ares até ancorar-se em ponto
seguro, o fio da aranha, a qual pulou rápido, encolhendo as pernas de medo de
ser alcançada.
E teve toda
a razão para se encolher a aranhazinha, visto que o escorpião, inconformado com
a providência Divina, ainda tentou de todas as formas alcançar a quase vítima.
Esticou-se todo, manobrou pernas, tenazes, cauda assassina e postou-se à beira
do parapeito onde se encontrava, de maneira a segurar-se nas pontinhas das
unhas e com o gancho-ferrão, último segmento da cauda, tentar pescar o fio e
com ele a apavorada aranha.
Mas qual,
adivinhando-lhe a intenção, a frágil aranhazinha recomeu ou enrolou (não sei
bem, já não ando lá essas coisas das vistas) um bocado do fio e já começou a
alegrar-se e a pensar em como iria contar tudo aquilo nas rodas de aranhas.
Pensando já saboreava a admiração, os tapinhas nas costas e a inveja de muita
gente, digo, de muito bicho.
É bem
verdade que poderiam acusa-la de não ter tido ação nenhuma na aventura, ao que
retrucaria dizendo: E quem foi que lançou o fiozinho para a ação Divina, quem
foi que ficou firme esperando, observando e, na hora precisa saltou?...
Foi ela, que
teve medo mas teve coragem também, e teve fé, sangue frio e argumentos para
convencer o Senhor a modificar o final de um ato que já estava escrito,
conforme ela pensava.
Por tudo
isso sobreviveu a uma grande aventura.
Fim Rilmar
(1985?)
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1 DE
SETEMBRO
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