PANDEMIA
Era um fim
de dia, a luz do sol já não era tanta, não era ainda hora de a noite chegar,
mas a brandura da luz do sol já permitia que a gente olhasse para o poente.
Olhando em
direção ao horizonte fomos lentamente percebendo algo como se fosse uma discreta
nuvem. Talvez de aves, andorinhas possivelmente.;
Só quando o
fenômeno se aproximou mais é que notamos pelo silêncio, pelas formas dos que
estavam à frente e pela sutileza dos movimentos, que não eram pássaros, nem
morcegos, nem gafanhotos.
Impressionavam
pela nuvem que formavam sendo capaz de desenhar um arco no horizonte.
Eram
brancos, arredondados em sua porção anterior e se disfarçavam no restante dos
corpos porque se sobrepunham em várias camadas, eram pequenos e assim se
tornavam mais densos como se também obedecessem a alguma lei da nossa física.
Fantasmas,
almas sem corpo foi o que lentamente se delineou até ser bastante nítido.
Por se sobreporem em várias camadas e pela
densidade somada, compunham uma nuvem capaz de arrefecer, ainda que levemente, a
luminosidade que ainda restava no céu.
Vivíamos
tempos de uma pandemia onde as pessoas morriam aos milhares, todos os dias,
devido a alguma coisa tão pequena, inodora, invisível, silenciosa e sutil que nos
parecia estarmos a mercê de alguma maldição ou castigo de Deus.
Em verdade um
vírus somado à interpretação social e psicológica do ser humano.
Outra
propriedade da maldição, além de adoecer e matar no mundo todo, era a
indiferença que causava nas pessoas ainda não afetadas.
Atarantada, a humanidade ignorava o mal.
Quase não se viam os mortos já que morriam nos
hospitais e eram sepultados sem contato com as famílias. Apenas se dava por
falta de um ou de outro indivíduo e se ficava sabendo que partira.
As almas se
desprendiam todos os dias em tal quantidade que, possivelmente, não apenas os
hospitais ficavam superlotados, não só os crematórios, não só os cemitérios;
mas os caminhos do céu, do purgatório e de qualquer outro destino das almas
também se abarrotavam, com certeza.
Daí a
profusão de fantasmas que devem ter se reunido em nuvens e perambulavam nos
céus do mundo
E chegaram
até ali naquele fim de tarde.
Um fantasma
ocasional a gente sabia que existia.
Fantasmas em
pequenos grupos eram relatados pelos notívagos contumazes e havia até
comprovações.
Mas, uma
nuvem de pequenos fantasmas surgida no horizonte e postada sobre a cidade,
pairando, voejando e alternando posições.
Nunca
tínhamos visto.
Era inacreditável.
Havia muita
coisa acontecendo nos mundos. A inversão do campo polar da terra, tempestades
solares, mudanças de clima no planeta, ondas eletromagnéticas de toda ordem e
cada vez mais, inconsequentemente produzidas, circundando o planeta e
perpassando as mentes e os órgãos de todos os seres.
Crateras
imensas nas camadas de proteção do planeta.
O Céu era uma
azáfama só. Desde a recepção onde as portas de entrada tiveram que ser abertas
totalmente, tal como já acontecera na segunda guerra, tal era o número de almas
que chegavam atônitas, confusas, arfantes ainda por terem vindo diretas de
respiradores, além das que morreram de outras causas mas somavam-se à multidão
das que vinham da pandemia. O sacrossanto pessoal do controle tinha sido
triplicado e ainda tinha dificuldade de dar fluência ao grande número de recém-chegados.
As instalações tinham que ser ampliadas rapidamente o que levava a improvisações,
ao menos num primeiro momento. Tudo ia se resolvendo, mas demandava algum tempo
e fazia com que almas e mais almas se mantivessem aqui no planeta terra, de um
lado para outro enquanto aguardavam a vez de se erguerem em direção à morada
eterna.
Também quem
tinha outros destinos precisava que aguardar classificação e existência de
vagas.
Tantos
acontecimentos coexistiam com a humanidade que, pode ser que por isso, os
fantasmas tão numerosos e desorientados puderam se tornar visíveis.
Nem acreditávamos
no que víamos e nem é da natureza da mente humana visualizar essa outra
dimensão onde as almas habitam.
Começou a
crescer um medo em todo mundo.
Começamos a
rezar olhando o para cima e apontando o fenômeno.
Com pouco
tempo veio o padre local convocando desesperado, o povo para uma procissão de
perdão, de livramento, de confissões de culpas, de pedidos a Deus, de
sacrifícios. E, os que eram católicos foram se organizando em filas, vindos de
todos os lados: das casas, dos bairros distantes, das vendas que iam se
fechando, dos bares, da própria rua que estava apinhada de gentes temerosas,
mas também curiosas. E foi se formando filas e mais filas numa grande
procissão. Trouxeram paramentos às pressas, e andores, e mastros, e turíbulos
com incensos e brasas inundando o ar de fumaça e cheiro, e aspersores de água
benta, e rosários, e sinetas e até um púlpito portátil para o padre subir e
distribuir ordens além de ir iniciando cânticos e rezas apropriadas para o
momento e o evento.
Também os
pastores conclamaram os seus fiéis e nossa cidade contava com pelo menos três
denominações evangélicas.
Se eram em número menor, o seu fervor soava
caloroso, sonoro e cheio de uma fé capaz de remover montanhas, pelo que inspiravam
a maior confiança em ser capaz de contribuir para que aquela inusitada nuvem de
fantasmas fosse conduzida par perto de Deus e deixasse de nos assombrar,
Depois
vieram as rezadeiras também fervorosas e prontas para invocar santos e mais
santos em nosso socorro.
Vieram
também os espiritualistas.
Vieram
pessoas de outros povos com outras crenças e outras religiões.
Foi a maior
e mais ecumênica reunião espontânea de credos e de crentes, a mais densa e
fervorosa de que se tem notícia até hoje por lá. Todos oravam fervorosamente, e
o padre conclamava seus fiéis a buscarem o altíssimo em suas preces e
pensamentos. Então puderam ser vistos
até com alguns detalhes.
As
aparências variavam, mas a característica principal era serem pequenos, brancos
e não parecerem querer nos incomodar. Talvez estivessem de passagem.
Não se sabia.
Orávamos
fervorosamente pedindo a Deus que os levasse.
A peste era
a origem da profusão de fantasmas errantes que se organizava em bandos imensos,
ordenados e sem outra motivação que não fosse aguardar sua vez de serem
acolhidos no seu destino final.
A grande
peste era causada por seres mais invisíveis que os fantasmas; mais temíveis; tão
infinitamente pequenos que seus campos magnéticos eram indetectáveis. Apenas os
grandes laboratórios comprovavam a existência deles e até descreviam a forma,
mas o povo não os via.
Para o povo
os fantasmas eram mais concretos e, nesse instante podíamos vê-los.
Porém, os fantasmas, exatamente os fantasmas eram
a rubrica da existência da peste. Cada fantasma correspondia à perda de um ente
querido.
Muitos da
multidão já tinha sofrido uma ou mais perda sentida e lembrada. Vários tinha
uma ou mais tristeza dentro de si acompanhada de temores de novas perdas e pela
própria vida. No entanto, para a maioria, a peste despertava a curiosidade, era
notícia, porém um estranho fenômeno psíquico os levava à negação ou à
indiferença.
Aí começou o
milagre da emanação em forma de um clarão que se ergueu a partir da multidão
que orava e foi se elevando em direção à nuvem.
Na medida
que a luminescência se aproximava, os seres que pairavam sobre a cidade foram
se organizando numa grande formação circular e, assumindo a forma de um funil
invertido, começaram a subir como um torvelinho, como se fosse um redemoinho indo
em direção ao infinito. Porém de forma ordenada e de moderada velocidade.
Eram tantos
que foi longo o tempo em que foram e foram subindo e indo embora. Caiu a noite
e eles continuavam a entrar no torvelinho indo lentamente em direção ao seu
destino. Como muitos de nós supunha ter alguém entre eles, desejávamos
fervorosamente que o destino fosse os Reinos dos Céus, a eternidade celeste,
Deus.
E eles
continuavam a ir e ir e pela noite deve ter finalmente ido até o último deles.
Na manhã seguinte um sol radiante iluminou o
dia e as mentes. Ainda houve comentários, mas predominava uma postura
meditativa e uma expressão de esperança e otimismo.
Pode ser que
em várias partes do mundo tenha se repetido fenômenos semelhantes pois a
pandemia se enfraqueceu, as vacinas chegaram a cada ser humano existente,
efeitos manadas também se fizeram sentir; os vírus, de tanto se mutarem
acabaram meio inertes e voltando a habitar somente os morcegos chineses.
Durante um
longo tempo a humanidade se ocupou trabalhando arduamente, se recompondo,
reorganizando, resgatando, repondo conhecimentos, refazendo, limpando, reestruturando
o muito que foi destruído mesmo sem bombas.
O emocional demandou
mais tempo.
Muita coisa
era sem conserto.
Desde então
cientistas do mundo inteiro passaram a se empenhar na preservação do ambiente
invisível que nos cerca promovendo a limpeza do excesso de ondas e emanações que
poluem o espaço atmosférico onde tudo e todos estamos mergulhados.
No entanto
percebia-se claramente que os que aqui ficaram estavam tendo mais uma
oportunidade.
21/07/2020 - rilmar
Lindo !! Real !! Reflexivo . Gratidão por falar tão poeticamente de um momento tão difícil da humanidade.
ResponderExcluirGrato pela estimulante apreciação. Vem tão de dentro que apenas deixo fluir. Navegue mais pelo blog. Obrigado.
ExcluirQue texto maravilhoso de esperança e fé no futuro da humanidade.
ResponderExcluirRaramente leio coisas assim hoje em dia.
A alusão as diversas religiões, indicando a tolerância e o respeito a cada credo, bem como a importância de cada um, foi um primor que só mentes mais esclarecidas irão compreender e admirar.
Obrigado pela mensagem de esperança em tempos tão sombrios!
Grato pela estimulante apreciação. Apreciadores analíticos de textos assim também são raros. Grande abraço.
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