segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Mel - Melis - Meis



Mel, Meles, Meis

Jabuticabeira florida, branquinha, branquinha. Fragrância de flores, doce e sutil. Zumbidos em um uníssono, de abelhas as mais variadas. Arapuá, europeia, africanas, jataí, além de mangangos, mosquinha mindinho, e vários insetos atraídos pelo cheiro, pelo néctar e até por outros insetos.
Maluco por mel, por jabuticabas e pelos cheiros e beleza da floração, eu que andava por ali, parei e fiquei apreciando por algum tempo. Daí tive a ideia de seguir as jataís em sua trajetória de volta à colmeia. Como eram muitas, após algumas tentativas, acabei por conseguir descobrir o destino delas.
As jataís não atacam a gente; são dóceis e produzem o melhor mel do mundo. Que mel.
Clarinho, finíssimo, doce, de um doce sem acidez alguma e de um odor leve de flores silvestres.
Então, não há embate ao abordarmos uma colmeia de jataí. A dificuldade é que estabelecem as tais colmeias em lugares de dificílimo acesso como ocos escondidos no interior de troncos de árvores, as mais duras da natureza como angicos, cedros, aroeiras.
Segui.
Descobri que entravam em um tronco de angico muito grosso, através de um buraquinho redondinho e estreito cuja entrada ainda era protegida por um canudinho de cera por onde entravam e saiam sem parar.
Não era certeza de que encontraria mel. Ainda assim busquei algumas ferramentas em casa e em certo dia, bem cedinho e sozinho, comecei a cavucar o tronco em busca do sonhado mel. Poderia dizer que era mais um esculpir de um túnel que um cavucar desordenado e sem rumo. Procurei ir penetrando guiado pelo tunelzinho das próprias abelhinhas. Trabalhei cuidadosamente um dia, dois e no final do terceiro dia achei sinais da colmeia. Um oco já no cerne da árvore. O lenho da madeira era duríssimo e avermelhado. Procurando não destruir o meu precioso achado para que não perdesse o mel; fui ampliando meticulosamente o túnel até que descobrisse os favos de mel e pudesse introduzir, ao menos uns três dedos econseguisse ir lentamente colhendo favos de mel com o maior cuidado para não destruir nem desperdiçar nada.
Acabei conseguindo encher uma garrafinha de uns 300ml, o que já era uma tremenda preciosidade para mim.
Depois, tentei reconstituir o buraco que fizera, com uma massa de barro, alguma cera e fragmentos de madeira obtidos na faina de penetrar o tronco. Se deixasse aberto, formigas invadiriam o ninho das abelhinhas e causariam uma destruição total. Elas, as abelhinhas, por certo recomporiam o prejuízo que lhes dei.
Ao menos para minha consciência parecia ser bom, retomei trajeto da volta para minha casa. Percorri um caminho estreito desenhado no chão de um pasto que ficava fora da matinha onde conseguira o mel até que cheguei no curral da fazendinha onde moravam os donos da terra. Passei pelo vão de duas tábuas, atravessei o curralzinho, tornei a passar num vão de tábuas e cruzei a frente da porta da casa.
Surgiu o primeiro problema.
Seu Gilson, dono da casa, foi vendo minha garrafinha de mel e já foi dizendo: - Mais que beleza! Foi mel tirado aqui na fazenda? – Quero um pouco. Metade para cada um. Parece justo não?
-Si... si.... sim; seu Gilson, O Sr tem uma vasilha para eu por um pouco?
Lá veio ele com um vidro onde já estava um pouco de mel e falou: Pode despejar aqui. Despejei enquanto ele observava, com olhar ambicioso e atento vigiando o mel escorrer lentamente de minha garrafinha para o vidrão ensebado e empoeirado dele.
Saí dali já meio contrariado, tendo o cuidado de tapar bem a garrafinha e colocá-la num embornal para não chamar muito a atenção. Fui andando, assobiando umas musiquinhas para distrair a mente e amainar um pouco a contrariedade. Passei pela venda do Alberto e caí na besteira de entrar para comprar uma latinha de sardinha para enfeitar o arroz da janta.
Tinha lá uns conhecidos já de olhos vermelhos, boca inchada e expelindo uma baba espessa enquanto falavam. Cheios de intimidade que nunca tivemos, vieram para perto, talvez querendo que eu abrisse a latinha de sardinhas para propiciar-lhes um tira- gosto. Não chegava a ser grande problema por as sardinhas em óleo, em um prato e acrescentar bastante farinha e dividir com eles. Mas, logo alguém bateu a mão no embornal e perguntou o que era.
- É um restinho de mel de jataí que estou levando para meu sobrinho que está tossindo muito; menti.
- Mel de jataí! Num tem coisa melhor para temperar uma pinga. Dê ao menos um pinguinho para cada um. Um trisquinho de nada. Não vai fazer falta.
Melhor atender e tratar de ir embora, pensei.
Não compensa arranjar inimizades.
Peguei a garrafinha que já estava pela metade e dei uma benzidinha em cada copo e tratei de ir saindo, quando o dono do boteco estendeu um quarto copinho de dose e lá se foi mais um tantinho.
Agora minha meia garrafa de meu precioso mel, já era pouco mais que um terço de garrafa. Mas ainda restava mais de cem centímetros e eu contava de chegar em casa e ir bebendo cada dia um pouquinho com requeijão ou pingando na mão e ir lambendo; até fechando os olhos para melhor degustar a delicadeza, o aroma e o dulcíssimo sabor.
Mas Deus tinha um plano para aquele mel.
Penso que sim.
Uma epidemia de coqueluche grassava na cidade. Cada casa da rua tinha ao menos uma criança tossindo espasmodicamente, até beber o fôlego e cair no chão, molezinha, desvalida e roxinha; como mortas. Todo mundo da casa dava palpites, abanava, sacudia, rezava; e a criança permanecia inerte por alguns momentos, segundos. Depois, relaxavam a musculatura e iam, aos poucos, respirando lentamente e recobrando a cor e com ela a vida.
As mães saíam nas portas desesperadas, arrancando os cabelos da cabeça e gritando por socorro.
Vacina anti-pertussi, assim como outras, ainda não existia. Já haviam dado de tudo para as crianças. Remédios de farmácia eram caros e não resolviam. Chás, ervas, simpatia, leite de égua; tudo já havia sido tentado.
A última esperança era um xarope a base de assa-peixe, casca seca de laranja e... mel de jataí.
Olhei para a garrafinha. Não havia como dividir mais. Ou era para mim ou era para aquelas pobres mães desesperadas e seus preciosos filhinhos.
Dei aquele e fui atrás do fazendeiro para pedir a quota que deixara para ele. O homem duvidou um pouco mas ele também sabia da epidemia e já curara gente da família com o milagroso mel. Consegui mais um pouco e trouxe para aquelas mães. As crianças escaparam ou por causa do mel ou porque coqueluche acaba sarando sozinha. Mas a melhora foi imediata.
Foi bom, não me arrependo. Mas....
Da próxima vez vou atrás de mel de Arapuá que é mais farturento e quase ninguém gosta.
Dessa vez vou me fartar de mel, finalmente.
Rilmar – 15\10\2017

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