segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

NEVE EM IPAMERI

Neve em Ipameri
Deu-se o fato de cair neve onde nunca tinha nevado.
A cidade era totalmente despreparada para tal fenômeno da natureza.
A gente sabia da existência da neve, mais por ouvir dizer que por imagens, já que à época até imagens eram escassas.
Mas nevou.
Primeiro foram dias e dias de frio insuportável. Janelas fechadas, frestas das portas tapadas com panos velhos e papéis de embrulho, fogão mantido aceso à guisa de lareira, juntadas as camas para se sobrepor cobertores e forrar com jornais e lençóis o leito onde cinco ou seis corpinhos de crianças, como fazem os filhotinhos, juntam-se para se aquecerem mutuamente. Também as roupas foram reforçadas: blusas sobre blusas, calças se sobrepondo, meias, gorros e posição fetal; gemuras, bater de queixinhos e lamentos. No mais era rezar para que o dia amanhecesse na esperança de que o sol viesse e aquecesse tudo.
Meu pai, líder e condutor de todos nós, estava com duas camisas, camiseta por baixo, uma velha blusa de frio dos tempos de quartel, um cachecol antigo, chapéu, barba desdeixada; andava de um lado para o outro, fumando e soltando baforadas ora de fumaça, ora de ar úmido e morno que se condensava e virava uma névoa branca como a própria fumaça.
- Hoje deve gear. Dizia ele em sua sabedoria. Já vi geada com muito menos frio do que o que está fazendo.
Na minha cama, onde toda a meninada se aninhara, o frio abrandou um pouco com o ajuntamento de corpos, sobreposição de cobertores com o acréscimo de duas redes e um pedaço de lona que minha mãe jogou por cima da ninhada. Consegui uma posição mais para o meio da turma e comecei a me sentir confortável o bastante para que o sono me tomasse.
A noite era comprida, longa e parece que não passava nunca. Quanto mais a madrugada ia chegando mais o frio apertava, mais os queixos batiam, mais a gente colava uns nos outros instintivamente na tentativa de ganhar e poupar calor.
E toma de frio intenso.
Minha mãe, até ela usava uma calça comprida e um vestido por cima, além da blusa de flanela e de um pequeno cobertor usado à guisa de ponche; foi até à cozinha e atiçou o fogo e o lume do fogão clareou mais a casa. Parece que um calorzinho chegou até nós e que um arzinho morno empurrou um pouco o frio que entrava pelas frinchas do telhado.
Adormeci já sentindo a sensação de alguma coisa, como se fosse um leve chuvisco, batesse suavemente na janela do quarto. Adormeci aconchegado aos meus irmãos que também, àquela altura dormiam. A agrura do frio findou por nos unir como nunca e espantar os medos e a solidão. Dormimos seguros, embolados e profundamente.
A noite se foi, mas o dia não clareava nunca. O máximo que percebíamos era uma claridade tênue e cinzenta adivinhada pelas frestas mínimas que sobraram em rachaduras das janelas ou nas frinchas de uma ou outra telha mal encaixada.
Depois começamos a perceber o sopro gélido de um ventinho cortante que entrava por algum lugar e nos desanimava de deixar a cama quentinha.
O fisiologismo nos instigava a levantar para ir ao banheiro, para comer alguma coisa, para mover os músculos e sair do marasmo. Tentávamos resistir... Estávamos resistindo bem.
De repente meu pai apareceu na porta do quarto, todo empacotado em roupas de frio (as possíveis) e cobertor; e anunciou: Levantem-se venham conhecer a neve!
Incrédulos, curiosos, excitados com a notícia e o inusitado de meu pai estar vindo mais convidar que ordenar que levantássemos; fomos pulando da cama e agarrando o que podíamos para nos embrulharmos, encolhidos e sentindo tremenda friagem penetrando nossos narizes, corremos para a única janela envidraçada da casa e tentamos ver alguma coisa. Não se via quase nada. Por dentro era a fumaça de nossas respirações que se condensava no vidro e impedia a visão. Por fora era alguma coisa pregada na vidraça que, ao contrário do embaçamento interno, não podia ser removida com toalhas ou papéis por quem estava de dentro.
Café quente, pão frito na hora e quentinho, leite quente, agasalhos improvisados, curiosidade imensa e estímulo de meu pai. Com pouco tempo, o vento sumiu e saímos na porta da rua para, pela primeira vez vermos a Neve. Talvez, nem em um século a mais, minha cidade veria novamente o fenômeno. Mas vimos! Toda a cidade viu.
A cidade ficou branca. As ruas, as gramas, os telhados, os agasalhos que envolviam as pessoas. Tudo era branco.
O frio já estava sob controle da improvisação, da solidariedade dos que tinham alguma sobra e davam aos que não tinham. Roupas se sobrepondo, flanela, algodão, cobertores, meias duplas por dentro da botinas e meiões de futebol indo até os joelhos, sendo que algumas pessoas punham meias sobre os sapatos. Pequenas fogueiras eram acendidas e atraiam grupinhos de pessoas que aproveitavam para conversar, fazer previsões, comentar, falar de mudanças nos fins dos tempos, invocar a Bíblia e muito mais.
A molecada logo se desinibiu e começou a inventar traquinagens correndo, deslizando, dando cambalhotas, fazendo bolas com a neve fofa e atirando uns nos outros. Depois fizemos bonecos, boizinhos, fazendinhas, morrinhos, montanhas, escadinhas até que, o frio foi vencendo a excitação e fomos nos recolhendo e recebendo alimentos bem quentes e caloríficos para nos recompor. Também aí valeu a inventividade, a improvisação e a solidariedade.
A temperatura deve ter subido um pouquinho pois foi possível fazer alguma higiene, por partes, dos corpos com panos molhados aquecidos, depois a gente comia alguma coisa e retomava a cama em grupo de irmãos, cobríamos-nos da melhor maneira e logo estávamos dormindo no dia frio e de pouca luz.
Mesmo com a precariedade dos meios de comunicação, a notícia se espalhou rápido e muita gente chegou à cidade para testemunhar o fenômeno. O Frio era geral. Uma super- onda de frio vinda dos Andes ou não sei de onde, chegara numa vasta região mas somente em minha cidade e imediações ocorrera a precipitação de neve.
Foi chegando turistas mas a neve durou pouco. Nevou alguns centímetros, cobriu bem as ruas, não chegou a ameaçar a precariedade dos telhados, constituiu-se na maior novidade que já presenciei; e depois, embora o frio permanecesse, a neve foi embora.
Ficaram as histórias de agua que não saia das torneiras, de congelamento de agua nas vasilhas, de animais que morreram, de mendigos quase congelados mas salvos pelas providências da população. Nossos canteiros de verduras foram dizimados, as árvores amarelaram as folhas mas depois se recuperaram. Andou faltando alimentos, escassearam-se as verduras, houve filas nas lojas para compras de cobertores. Não durou mais que três ou quatro dias o rigor da onda de frio. Houve ainda bastante frio, mas um frio comum, desses que a gente estava acostumado a enfrentar.
A Neve é linda, fofa, branca de uma alvura sem par. Mas, por mim e por todas as pessoas dali e daquela experiência, pode ir enfeitar outros lugares. Não é coisa nossa, não estamos preparados, causa o maior reboliço e enormes sofrimentos. Queremos não, Senhor!... Nunca mais.
23\09\2017 rilmar

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